segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O verdadeiro valor das coisas

Na década de 1920, o filósofo alemão Moritz Schlick escreveu um artigo intitulado “On the meaning of life” (“Sobre o sentido da vida”). A grande preocupação de Schlick era a de que, para muitas pessoas, o sentido da vida se encontrava no trabalho, e que não havia muito valor fora dele. O que o filósofo alemão testemunhava, na década de 1920, era uma verdadeira idolatria ao trabalho, e tal adoração persiste até os dias atuais, marcadamente em países como os Estados Unidos, mas também em regiões de colonização européia, como na serra gaúcha.
    Segundo Mark Rowlands, filósofo galês e autor do excelente O filósofo e o lobo (Objetiva, 2010), o trabalho se constitui em uma atividade que tem valor instrumental (ou extrínseco): o trabalho é bom porque a partir dele podemos conseguir outras coisas. Trabalhamos para receber o pagamento pelo trabalho que fizemos, e com o dinheiro podemos comprar aquilo que quisermos (ou pudermos), podemos viajar, podemos manter um nível de vida de certo conforto, etc. O valor do trabalho, por isso, não está nele mesmo, mas naquilo que ele nos possibilita ter ou fazer. Schlick ia além, e afirmava que o trabalho não é algo necessariamente remunerado: sempre que faço A para obter B, estou trabalhando.
    Passamos a maior parte de nossas vidas trabalhando, se considerarmos as definições apresentadas por Rowlands e Schlick. A maior parte das coisas que fazemos em nosso cotidiano vale por aquilo que elas nos possibilitam. Ligamos o aparelho televisor de nossa sala para esquecer nossos problemas. Lemos um artigo ou um livro porque temos provas a realizar, na escola ou na universidade. Caminhamos pelas ruas de nossa cidade porque queremos perder peso. Obviamente, as razões apresentadas para assistir a algo na TV, ler ou caminhar são importantes e válidas. Mas, segundo Rowlands, elas não são as melhores justificativas ou, pelo menos, elas nos afastam do maior valor que pode existir em uma leitura, ou em uma caminhada.
    Consideramos que alguma atividade tem valor intrínseco quando encontramos valor nela própria, ou seja, quando a atividade é um fim em si mesma. Mark Rowlands escreve a esse respeito em Running with the pack: thoughts from the road on meaning and mortality (Granta, 2013, ainda não publicado no Brasil), um livro que pode ser considerado como uma espécie de continuação de O filósofo e o lobo. Para Rowlands, correr é uma atividade de valor intrínseco. O autor passou boa parte de sua vida correndo em companhia de cães (e do lobo Brenin) e, com o tempo, começou a entender essa atividade como tendo um valor muito maior do que qualquer um normalmente atribuído a ela. Muitas pessoas correm para perder peso, para aliviar o estresse, ou para realizar alguma atividade social (quando correm em um grupo de pessoas – ou com os cães, como faz o filósofo), entre outros motivos. Mas sempre há um motivo para alguém correr. Rowlands afirma ter aprendido que, mais do que esses objetivos, correr pode ser algo mais. Correr com o único propósito de correr é o que tem feito o autor, apesar da dor e do mal estar que uma corrida algumas vezes causa. E correr por correr – a experiência pela experiência – é o que confere um grande significado à corrida.
    Rowlands escreve: “se queremos encontrar valor na vida, algo que poderia se apresentar como um possível sentido da vida, ou um de seus sentidos – então precisamos procurar por coisas que não têm propósito. Dito de outra maneira: a condição necessária para que alguma coisa seja realmente importante na vida é que ela não tenha um propósito fora dela mesma – que ela seja inútil para qualquer outra coisa. A inutilidade – nesse sentido – é uma condição necessária do valor real. Se o valor de algo fosse uma questão de sua utilidade para algo mais, então seria esse algo mais o centro do valor”. Assim, afirma o autor, encontrar um sentido intrínseco em boa parte das coisas que fazemos (considerando que é muito difícil, senão impossível, encontrar valor intrínseco em todas) é um dos caminhos para ter uma vida mais significativa.

   Terminei a leitura de Running with the pack e passei a pensar em como minhas atividades podem ser enquadradas em instrumentais ou de valor intrínseco. Parte significativa das coisas que faço, admito, tem valor instrumental. As faço porque preciso delas para outra coisa. Mas tenho aprendido e, principalmente, sentido, que tantas outras atividades que realizo são boas e valorosas por si mesmas. É esse o sentimento que tenho durante e depois de uma boa aula (seja eu professor ou aluno) ou da leitura de um bom livro. É assim que me sinto depois de uma caminhada com meus cães. É assim também quando converso com alguém sobre algum tema interessante. É assim quando sento ao lado de minha namorada, ou de meus pais, para tomar um chimarrão. E, por isso, dou razão a Rowlands quando ele afirma que a vida passa a ter mais significado quando extraímos mais sentido das coisas que fazemos.