quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Pensar melhor, para refinar nossas ideias e evitar os lugares-comuns

Existem várias respostas a perguntas referentes ao sentido de termos escolas e de educarmos formalmente alguém. Eu tendo a concordar com autores como John Dewey e, principalmente, Matthew Lipman, que defendiam que o objetivo educacional mais importante é nos fazer pensar melhor. Em A filosofia vai à escola (Summus, 1990), Lipman afirma que “nenhuma acusação à educação é mais séria do que a acusação de que ela favorece atitudes acríticas em vez de críticas” – o termo “crítica”, aqui, não deve ser entendido em seu sentido popularmente mais conhecido, como uma apreciação desfavorável ou uma constante busca de erros e de defeitos em alguma ideia. O que Lipman aponta é que escola deveria favorecer atitudes reflexivas, ponderadas, que estejam bem fundamentadas em razões, ou seja, razoáveis (esse é um termo muito usado pelo autor em seus escritos – um sujeito razoável, afirma Lipman, é alguém que faz uso constante da razão).
        A ideia de que a escola deve nos ajudar a pensar melhor não indica que o bom pensamento é um fim em si mesmo. Lipman argumentava que nós deveríamos nos preocupar em pensar melhor para melhorar os nossos julgamentos a respeito das mais variadas ideias às quais somos expostos. O refinamento de nossos julgamentos, conclui o autor, é o caminho mais confiável para termos uma vida melhor (individual e socialmente), considerando que nós costumeiramente agimos de acordo com aquilo que pensamos. Em O pensar na educação (Vozes, 2008), Lipman escreve:

O objetivo do processo educativo é o de ajudar-nos a formar melhores julgamentos a fim de que possamos modificar nossas vidas de maneira mais criteriosa. Julgamentos não são fins em si mesmos. Nós não experienciamos obras de arte a fim de julgá-las; julgamos estas a fim de sermos capazes de ter experiências estéticas enriquecedoras. Fazer julgamentos morais não é um fim em si mesmo; é um meio de melhorar a qualidade de vida.

        Pensar bem para formar melhores julgamentos parece ser algo razoável. E, quando se fala em “bom pensamento” nos termos descritos por Lipman – e resumidos nos parágrafos acima –, encontramos na literatura educacional a expressão “pensamento crítico” como seu correlato. Segundo o filósofo norte-americano Harvey Siegel, pensamento crítico é uma expressão que deve ser entendida normativamente como um conjunto de habilidades cognitivas e disposições comportamentais desejáveis para que alguém possa pensar melhor. Entre essas habilidades, por exemplo, estão a capacidade de entender e avaliar argumentos e a de pensar a respeito de seu próprio pensar (metacognição). Entre as disposições, a mais destacada é o chamado “espírito crítico”, ou seja, a inclinação que um sujeito tem a sempre procurar pensar de maneira aprofundada a respeito de algum tema, buscando razões e evidências que orientem o seu pensamento. A respeito do pensamento crítico, Siegel afirma:

Por causa dessa conexão entre razões e princípios, o pensamento crítico é um pensamento baseado em princípios: devido ao fato que os princípios envolvem consistência, o pensamento crítico é imparcial, consistente e não-arbitrário, e o pensador crítico tanto pensa quanto age de acordo com, e valoriza, a consistência, a justiça e a imparcialidade do julgamento e da ação. O julgamento crítico, baseado em princípios, em sua rejeição da arbitrariedade, inconsistência e parcialidade, pressupõe o reconhecimento da força dos padrões, considerando-os como universais e objetivos, de acordo com os quais os julgamentos devem ser feitos. Em primeira instância, tais padrões envolvem critérios pelos quais os julgamentos podem ser feitos com relação à aceitabilidade de várias crenças, afirmações e ações – ou seja, eles envolvem critérios que permitem a avaliação da robustez e da força das razões que podem ser oferecidas em suporte a crenças, afirmações e ações alternativas

        Além de ressaltar a importância de critérios para se pensar criticamente, Siegel apresenta um aspecto que eu considero o mais relevante, e difícil de ser atingido, para se pensar criticamente e fazer bons julgamentos: a imparcialidade. Todo ser humano é carregado de ideias, posições ideológicas, visões de mundo, etc. Além dessa carga de informação preconcebida, temos um aparato psicológico bastante eficiente em solidificar nossas crenças e elaborar mecanismos para defendê-las. Por isso é difícil pensar de modo imparcial, considerando somente as razões ou evidências às quais temos acesso, sem incutir nelas qualquer preferência pessoal.
      Consideremos o caso do aquecimento global antropogênico (AGA, também denominado “mudança climática antropogênica”), a ideia de que a atividade humana tem impactado o clima de nosso planeta. Nos Estados Unidos, é comum que um cidadão alinhado ao partido democrata aceite a ideia do AGA, enquanto outro, alinhado ao partido republicano, a rejeite. No entanto, provavelmente a aceitação ou rejeição da ideia do AGA tenha em seu âmago um forte viés ideológico: se o mundo está ficando cada vez mais quente, e se isso se dá devido ao aumento da concentração de gases estufa na atmosfera que, por sua vez, são em sua maioria resultado de atividade industrial, então é sensato que ocorram interferências nos sistemas de produção industrial, especialmente nos países que mais poluem, um cenário visto com maus olhos por um republicano, mas compatível com o pensamento democrata; por outro lado, se o AGA não existe, isso significa que não há nenhuma razão em restringir ou modificar qualquer aspecto da produção industrial, e assim a economia dos grandes países industrializados está a salvo de potenciais danos, em um cenário que agrada aos republicanos muito mais do que aos democratas. Assim, o AGA – que deveria estar somente no âmbito da ciência, pelo menos no que se refere à sua ocorrência (existem evidências para ele? O que diz o consenso científico a respeito do tema?) – acaba se tornando uma discussão carregada de ideologia, e guiada por ela.
        Casos como o do aquecimento global antropogênico e tantos outros (evolução X criacionismo, conspiracionistas que fazem campanhas contra a vacinação, negadores do holocausto, etc.) não nos mostram que é impossível ser imparcial quando ponderamos a respeito de determinada questão. Afinal, depois de toda a discussão que esses assuntos suscitaram, é possível saber para onde a preponderância das evidências aponta, e assim entender quais são as melhores ideias em cada caso (o AGA tem acontecido; a teoria da evolução biológica abrange o que melhor sabemos a respeito de como a vida evoluiu em nosso planeta; as vacinas funcionam, salvam vidas, e devem ser aplicadas conforme tradicionalmente se recomenda; o holocausto aconteceu, e resultou em milhões de pessoas mortas pelos nazistas). Aceitar a preponderância das evidências, mesmo que elas entrem em conflito com nossa visão de mundo, isso é ser imparcial no sentido apresentado por Siegel. A parcialidade, nesse caso, deve estar atrelada às razões e às evidências. "Se existirem boas razões para se aceitar 'A', mas minha visão de mundo está de acordo com 'B', o que fazer?" Se fortes razões existirem, um sujeito imparcial, fazendo um bom julgamento, deve considerar seriamente abandonar a ideia B em favor de A.
        Reli Lipman e Siegel há pouco tempo e, durante a leitura, refleti sobre a maneira pela qual uma série de debates é feita no Brasil. É muito comum encontrarmos chavões no lugar de ideias. Lugares-comuns abundam por aqui, e uma consulta aos comentários postados por leitores em páginas de notícias, ou em redes sociais, demonstra que as pessoas parecem mais empenhadas em atestar que abraçam determinada causa ou ideia do que propriamente a entendem. Se você solicitar a alguém que explique porque ele imagina que o Brasil está sob ameaça de golpe comunista (como algumas pessoas aparentemente propensas a ideias conspiracionisitas acreditam), dificilmente você receberá um conjunto de boas razões para aceitar essa ideia estranha. Igualmente, é provável que faltem bons argumentos para aqueles que costumam brincar com palavras ou expressões politicamente corretas, mas que não conseguem sustentar as suas ideias depois de uma ou duas perguntas pertinentes.
        Criamos uma cultura na qual uma virtude inquestionável é agarrar-se a alguma ideia e defendê-la a qualquer custo de exame externo – uma cultura que se opõe à defendida por autores como Matthew Lipman, por ser incompatível com o bom pensar. Um sujeito que passa a vida inteira repetindo bordões, mesmo sem ter pensado criticamente a respeito deles, é considerado por muitos como um bom exemplo intelectual. A dúvida, ou mesmo o abandono da crença em determinada ideia, não são virtudes bem cotadas entre nós. O filósofo americano Peter Boghossian, em seu corajoso A manual for creating atheists (Pitchstone Publishing, 2013), escreve a respeito dessa questão com muita propriedade:

Enquanto sociedade, temos considerado como virtude a importância de se acreditar em alguma coisa e de defender nossas crenças. A frase comum ‘defenda aquilo que você acredita’ tem sido tomada como algo positivo – uma virtude que deveria ser aspirada por todos, e uma deficiência moral se não for seguida.
        Se alguém deveria defender ou não aquilo em que acredita, isso depende exclusivamente em 'o que' esse sujeito acredita, e porque ele acredita nisso. Ter uma firme crença não é uma virtude. Nenhuma inferência moral confiável pode ser feita a respeito de um indivíduo baseado na força de sua convicção.


        Penso que nós todos deveríamos nos esforçar sinceramente para abrir um espaço importante para o pensamento imparcial, para as boas razões e evidências em nossa maneira de interagir com o mundo e sustentar nossos juízos a respeito de qualquer assunto. Pensar bem não implica defendermos a qualquer custo aquilo em que acreditamos, mas demanda honestidade intelectual suficiente para reavaliarmos nossas posições e ideias com base nas melhores evidências disponíveis, deixando um espaço considerável para a possibilidade de estarmos errados. E, no que diz respeito à possibilidade de alguém estar errado, a honestidade intelectual deveria fazer com que todos nós constantemente nos perguntássemos: que tipo de evidência ou razão eu preciso para concluir que determinada ideia – que eu aceito há algum tempo – não é tão boa quanto eu pensava e que, por isso, eu preciso revisá-la? Se existir alguma evidência ou razão que poderia confrontar nossas crenças, e nós estamos dispostos a analisá-la, então estamos desenvolvendo uma atitude que pode nos afastar de dogmatismos e nos conduzir a um pensar melhor.