sexta-feira, 19 de julho de 2013

Truques da Mente

Há séculos, nossos sistemas de percepção do mundo têm sido enganados de forma proposital por artistas talentosos. Os grandes mestres da pintura sabem como utilizar tonalidades distintas de cores, entre outros recursos, para nos dar a sensação de que estamos vendo uma paisagem em profundidade quando olhamos para uma tela. Produções de cinema usam sons, combinações de luzes, efeitos tridimensionais e animações computadorizadas para dar um ar especial a seus filmes, o que faz com que fiquemos assombrados com a qualidade daquilo que vemos, um espetáculo para nossos olhos e ouvidos. Na verdade, qualquer pessoa que liga um aparelho televisor vai ficar imersa em uma combinação de imagens e sons que irão estimular de tal modo seus sentidos que muitos detalhes passarão despercebidos, como os comuns erros de continuidade em filmes (personagens cujas roupas mudam de cor subitamente, mudanças em objetos no cenário, etc.).
        O francês Ernest Ostrowsky, sua mulher e seu filho também são mestres na arte de enganar nossos sentidos, mas não através de pinturas ou da televisão. A família Ostrowsky é composta por mágicos, e seu mais famoso número, chamado “Omar Pasha”, é uma das apresentações mais impressionantes que eu já vi. “Omar Pasha” é um número de teatro negro, ou seja, um número encenado em um palco totalmente negro, iluminado com luzes negras. No palco, um homem (Omar Pasha) vestido com uma roupa branca, capa vermelha e com um turbante aparece ao som do Bolero de Maurice Ravel. Pasha começa, então, a interagir com o cenário, “desenhando” um grande candelabro com velas vermelhas, usando para isso uma caneta que ele tira do turbante. Para espanto do público, o candelabro de Pasha se transforma em um objeto real, e o homem o levanta, leva para outro lado do cenário e ainda acende as três velas que estão na parte superior do objeto. O truque do candelabro é o primeiro de uma sequência inacreditável, que inclui o surgimento e desaparecimento de objetos grandes como cadeiras, a aparição de pessoas, e até uma decapitação. A primeira pergunta que a maioria das pessoas deve se fazer depois de assistir à apresentação de Omar Pasha é: “como ele faz isso?” E como o público não percebe os truques?
        Famosos mágicos contemporâneos, como os da família Ostrowsky, Penn & Teller, David Copperfield, David Blaine e Criss Angel seguem a tradição dos mestres da magia, como Harry “O Grande” Houdini, um dos maiores da história nessa arte. E, da mesma maneira que Houdini, os melhores mágicos de hoje não podem contar apenas com habilidade manual, rapidez e perspicácia, embora esses sejam requisitos básicos de um grande mágico. Mestres da magia também precisam conhecer como as pessoas reagem aos truques, e de que forma seus sistemas de percepção podem ser ludibriados. Omar Pasha apela a um grande número de estímulos visuais, e a escuridão do cenário é o ponto crucial de toda sua apresentação. Talvez as pessoas que assistem ao número até desconfiem de como ele é realizado, mas os truques se desenrolam com tamanha naturalidade e em um ritmo elaborado de modo a impossibilitar aos espectadores que descubram os segredos de Pasha.

        Os neurologistas Stephen Macknik e Susana Martinez-Conde têm acompanhado os números de mágica há algum tempo, pois pensam que eles podem revelar muito a respeito de como pensamos e vemos o mundo – e de como podemos ser enganados por nossas próprias percepções. As ideias de Macknik e Martinez-Conde sobre a relação entre a mágica e as nossas percepções estão no ótimo Truques da Mente: o que a mágica revela sobre o nosso cérebro (Editora Zahar, 2011). “O que você vê, ouve, sente e pensa se baseia no que espera ver, ouvir, sentir e pensar”, escrevem os autores. E é bom estarmos cientes disso, pois não são somente os mágicos que lucram com nossas fraquezas de percepção.

O teatro de Omar Pasha


O truque do avarento


Um bom acervo de vídeos sobre mágica e neurociência está disponível no site dos autores de Truques da Mente. Para acessá-lo, clique aqui.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Perdendo o futuro

O filósofo Mark Rowlands escreve a respeito da morte em Scifi = scifilo, e discute se ela pode ser ruim por nos privar de algo que almejamos boa parte de nossa vida, e de coisas para as quais dedicamos muitos de nossos esforços. Alguém que tem uma vida orientada para o futuro, argumenta Rowlands, tem o que ele chama de um “futuro forte”. Um sujeito que não investe em seu futuro, e não se preocupa com ele, tem, por sua vez, um “futuro fraco”. Rowlands usa os dois termos para apresentar algumas de suas ideias sobre a morte. O autor, em O Filósofo e o Lobo, obra escrita posteriormente à Scifi = scifilo, descarta boa parte das coisas que escreveu sobre os futuros fraco e forte. A convivência com o lobo Brenin parece ter feito Rowlands reconsiderar a ideia de que a morte não é, por si só, ruim para os animais, indivíduos que ele imaginava possuírem um futuro fraco. O trecho abaixo foi extraído do livro Scifi = scifilo:

A morte é uma coisa ruim porque nos priva de um futuro. Todavia, vemos agora que é possível ter um futuro de duas maneiras diferentes, uma forte e outra fraca. Isto faz diferença para o caráter danoso ou ruim da morte? Seria a morte pior para alguém que possui um futuro forte que para alguém que só tem um futuro fraco?
        Acredito que sim. Alguém que possui um futuro forte, orientando muito de seu comportamento presente e disciplinando muitos de seus desejos presentes rumo a uma concepção de como esta pessoa quer que seu futuro seja, é mais fortemente ligado ao seu futuro que alguém que tem apenas um futuro fraco. Logo, uma pessoa que tem um futuro forte tem mais a perder, ao perder um futuro, que uma pessoa que possui apenas um futuro fraco.
        Se isto não ficou claro, considere o exemplo seguinte: duas pessoas vão às Olimpíadas competir no triatlo. Uma delas treinou por anos, orientou sua vida, organizou seu comportamento e disciplinou seus desejos para atingir esse objetivo. A outra é uma atleta preguiçosa e incapaz que chegou aos jogos olímpicos, vamos supor, através de um erro de identificação. Nenhuma das duas ganha uma medalha. Às vezes falamos que alguém “perdeu” a medalha. Se isto é realmente uma perda, então aparentemente a perda maior é sofrida pela primeira atleta, já que ela organizou sua vida ao redor desta meta. Muito de sua vida foi vivida por causa deste objetivo futuro, que ela não atingiu. Ela tinha claramente mais dela mesma investido em conseguir a medalha que a outra atleta. Logo, sua perda é maior.
        Estou argumentando de maneira semelhante ao prejuízo envolvido em perder um futuro. Quanto mais você tiver investido no futuro, julgando em termos de organização, orientação, disciplinamento e arregimentação de seu comportamento e desejos presentes, mais você perde quando perde tal futuro. Se você tem um futuro num sentido conceitual, ou forte, então, quando você morre você perde mais do que se você possuísse um futuro apenas no sentido fraco, não-conceitual. A morte é um prejuízo maior para aqueles que têm um futuro forte, pois na morte eles perdem mais que aqueles que possuem um futuro apenas fraco.



Extraído de ROWLANDS, M. Scifi = scifilo: a filosofia explicada pelos filmes de ficção científica. Rio de Janeiro: Relume, 2005.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A moralidade nas ações de efeitos mínimos

Francisco de Assis, CEO do grupo ambientalista Companheiros da Terra (CDT), foi sequestrado por um bando de pinguins-imperadores, irritados com a sua campanha em torno do aquecimento global, pois ela está atrapalhando o prazer dos pinguins de viajar de avião por baixos preços e dirigir na neve. Os pinguins descobriram que suas nadadeiras não servem para segurar armas, então preferem um confronto não violento com o CDT. Esperam usar argumentos racionais para persuadir Francisco de que sua organização está equivocada. Contrataram, para isso, Peripatético, um pinguim-rei filósofo, para conversar com Francisco e fazê-lo mudar de ideia.

Peripatético: Sua organização tem um compromisso com o princípio de que todos nós contribuímos para a mudança climática e que somos, portanto, moralmente responsáveis por suas consequências, certo?
Francisco: Sim, Peripatético. Todos temos nossa pegada de carbono, que é a quantidade de gases de efeito estufa que cada indivíduo emite direta e indiretamente. Sabemos que essas emissões contribuem para o aquecimento global produzido pelo homem e pelo pinguim. Sabemos que o aquecimento global causará tamanho impacto ambiental que o sofrimento será sentido no futuro. Por isso, somos todos moralmente responsáveis por esse sofrimento futuro e precisamos tomar medidas para minimizá-lo.
Peripatético: Então, o que você está dizendo é que, se eu parar de usar meu desodorante debaixo das nadadeiras e não voar para ver meus primos no Havaí, menos pessoas sofrerão no futuro?
Francisco: Não, não é isso. Estou dizendo que, se todos nós tentarmos minimizar nossa pegada de carbono, menos pessoas sofrerão no futuro.
Peripatético: Interessante. Será que a minha pegada de carbono é tão relevante que, se não houvesse, teria menos aquecimento global e, portanto, menos sofrimento no futuro?
Francisco: Não. O efeito de um único indivíduo é ínfimo no aquecimento global. Mas, se você multiplicá-lo pela população mundial – mais de 6 bilhões de pessoas –, teremos um efeito grande.
Peripatético: Então, na verdade, se eu continuar fazendo o que faço, viajando de avião e dirigindo na neve, além dos churrascos, não causarei nenhum sofrimento adicional no futuro? Você mesmo admite que o efeito de um único indivíduo no aquecimento global é desprezível, certo? [A plateia de pinguins aplaude calorosamente.]

Peripatético está certo ao sugerir que nenhum indivíduo, isoladamente, é responsável por quaisquer consequências do aquecimento global?


Extraído de STANGROOM, J. O dilema de Einstein: exercite sua inteligência com questões que desafiam o bom senso. São Paulo: Editora Marco Zero, 2011.