quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Pensar melhor, para refinar nossas ideias e evitar os lugares-comuns

Existem várias respostas a perguntas referentes ao sentido de termos escolas e de educarmos formalmente alguém. Eu tendo a concordar com autores como John Dewey e, principalmente, Matthew Lipman, que defendiam que o objetivo educacional mais importante é nos fazer pensar melhor. Em A filosofia vai à escola (Summus, 1990), Lipman afirma que “nenhuma acusação à educação é mais séria do que a acusação de que ela favorece atitudes acríticas em vez de críticas” – o termo “crítica”, aqui, não deve ser entendido em seu sentido popularmente mais conhecido, como uma apreciação desfavorável ou uma constante busca de erros e de defeitos em alguma ideia. O que Lipman aponta é que escola deveria favorecer atitudes reflexivas, ponderadas, que estejam bem fundamentadas em razões, ou seja, razoáveis (esse é um termo muito usado pelo autor em seus escritos – um sujeito razoável, afirma Lipman, é alguém que faz uso constante da razão).
        A ideia de que a escola deve nos ajudar a pensar melhor não indica que o bom pensamento é um fim em si mesmo. Lipman argumentava que nós deveríamos nos preocupar em pensar melhor para melhorar os nossos julgamentos a respeito das mais variadas ideias às quais somos expostos. O refinamento de nossos julgamentos, conclui o autor, é o caminho mais confiável para termos uma vida melhor (individual e socialmente), considerando que nós costumeiramente agimos de acordo com aquilo que pensamos. Em O pensar na educação (Vozes, 2008), Lipman escreve:

O objetivo do processo educativo é o de ajudar-nos a formar melhores julgamentos a fim de que possamos modificar nossas vidas de maneira mais criteriosa. Julgamentos não são fins em si mesmos. Nós não experienciamos obras de arte a fim de julgá-las; julgamos estas a fim de sermos capazes de ter experiências estéticas enriquecedoras. Fazer julgamentos morais não é um fim em si mesmo; é um meio de melhorar a qualidade de vida.

        Pensar bem para formar melhores julgamentos parece ser algo razoável. E, quando se fala em “bom pensamento” nos termos descritos por Lipman – e resumidos nos parágrafos acima –, encontramos na literatura educacional a expressão “pensamento crítico” como seu correlato. Segundo o filósofo norte-americano Harvey Siegel, pensamento crítico é uma expressão que deve ser entendida normativamente como um conjunto de habilidades cognitivas e disposições comportamentais desejáveis para que alguém possa pensar melhor. Entre essas habilidades, por exemplo, estão a capacidade de entender e avaliar argumentos e a de pensar a respeito de seu próprio pensar (metacognição). Entre as disposições, a mais destacada é o chamado “espírito crítico”, ou seja, a inclinação que um sujeito tem a sempre procurar pensar de maneira aprofundada a respeito de algum tema, buscando razões e evidências que orientem o seu pensamento. A respeito do pensamento crítico, Siegel afirma:

Por causa dessa conexão entre razões e princípios, o pensamento crítico é um pensamento baseado em princípios: devido ao fato que os princípios envolvem consistência, o pensamento crítico é imparcial, consistente e não-arbitrário, e o pensador crítico tanto pensa quanto age de acordo com, e valoriza, a consistência, a justiça e a imparcialidade do julgamento e da ação. O julgamento crítico, baseado em princípios, em sua rejeição da arbitrariedade, inconsistência e parcialidade, pressupõe o reconhecimento da força dos padrões, considerando-os como universais e objetivos, de acordo com os quais os julgamentos devem ser feitos. Em primeira instância, tais padrões envolvem critérios pelos quais os julgamentos podem ser feitos com relação à aceitabilidade de várias crenças, afirmações e ações – ou seja, eles envolvem critérios que permitem a avaliação da robustez e da força das razões que podem ser oferecidas em suporte a crenças, afirmações e ações alternativas

        Além de ressaltar a importância de critérios para se pensar criticamente, Siegel apresenta um aspecto que eu considero o mais relevante, e difícil de ser atingido, para se pensar criticamente e fazer bons julgamentos: a imparcialidade. Todo ser humano é carregado de ideias, posições ideológicas, visões de mundo, etc. Além dessa carga de informação preconcebida, temos um aparato psicológico bastante eficiente em solidificar nossas crenças e elaborar mecanismos para defendê-las. Por isso é difícil pensar de modo imparcial, considerando somente as razões ou evidências às quais temos acesso, sem incutir nelas qualquer preferência pessoal.
      Consideremos o caso do aquecimento global antropogênico (AGA, também denominado “mudança climática antropogênica”), a ideia de que a atividade humana tem impactado o clima de nosso planeta. Nos Estados Unidos, é comum que um cidadão alinhado ao partido democrata aceite a ideia do AGA, enquanto outro, alinhado ao partido republicano, a rejeite. No entanto, provavelmente a aceitação ou rejeição da ideia do AGA tenha em seu âmago um forte viés ideológico: se o mundo está ficando cada vez mais quente, e se isso se dá devido ao aumento da concentração de gases estufa na atmosfera que, por sua vez, são em sua maioria resultado de atividade industrial, então é sensato que ocorram interferências nos sistemas de produção industrial, especialmente nos países que mais poluem, um cenário visto com maus olhos por um republicano, mas compatível com o pensamento democrata; por outro lado, se o AGA não existe, isso significa que não há nenhuma razão em restringir ou modificar qualquer aspecto da produção industrial, e assim a economia dos grandes países industrializados está a salvo de potenciais danos, em um cenário que agrada aos republicanos muito mais do que aos democratas. Assim, o AGA – que deveria estar somente no âmbito da ciência, pelo menos no que se refere à sua ocorrência (existem evidências para ele? O que diz o consenso científico a respeito do tema?) – acaba se tornando uma discussão carregada de ideologia, e guiada por ela.
        Casos como o do aquecimento global antropogênico e tantos outros (evolução X criacionismo, conspiracionistas que fazem campanhas contra a vacinação, negadores do holocausto, etc.) não nos mostram que é impossível ser imparcial quando ponderamos a respeito de determinada questão. Afinal, depois de toda a discussão que esses assuntos suscitaram, é possível saber para onde a preponderância das evidências aponta, e assim entender quais são as melhores ideias em cada caso (o AGA tem acontecido; a teoria da evolução biológica abrange o que melhor sabemos a respeito de como a vida evoluiu em nosso planeta; as vacinas funcionam, salvam vidas, e devem ser aplicadas conforme tradicionalmente se recomenda; o holocausto aconteceu, e resultou em milhões de pessoas mortas pelos nazistas). Aceitar a preponderância das evidências, mesmo que elas entrem em conflito com nossa visão de mundo, isso é ser imparcial no sentido apresentado por Siegel. A parcialidade, nesse caso, deve estar atrelada às razões e às evidências. "Se existirem boas razões para se aceitar 'A', mas minha visão de mundo está de acordo com 'B', o que fazer?" Se fortes razões existirem, um sujeito imparcial, fazendo um bom julgamento, deve considerar seriamente abandonar a ideia B em favor de A.
        Reli Lipman e Siegel há pouco tempo e, durante a leitura, refleti sobre a maneira pela qual uma série de debates é feita no Brasil. É muito comum encontrarmos chavões no lugar de ideias. Lugares-comuns abundam por aqui, e uma consulta aos comentários postados por leitores em páginas de notícias, ou em redes sociais, demonstra que as pessoas parecem mais empenhadas em atestar que abraçam determinada causa ou ideia do que propriamente a entendem. Se você solicitar a alguém que explique porque ele imagina que o Brasil está sob ameaça de golpe comunista (como algumas pessoas aparentemente propensas a ideias conspiracionisitas acreditam), dificilmente você receberá um conjunto de boas razões para aceitar essa ideia estranha. Igualmente, é provável que faltem bons argumentos para aqueles que costumam brincar com palavras ou expressões politicamente corretas, mas que não conseguem sustentar as suas ideias depois de uma ou duas perguntas pertinentes.
        Criamos uma cultura na qual uma virtude inquestionável é agarrar-se a alguma ideia e defendê-la a qualquer custo de exame externo – uma cultura que se opõe à defendida por autores como Matthew Lipman, por ser incompatível com o bom pensar. Um sujeito que passa a vida inteira repetindo bordões, mesmo sem ter pensado criticamente a respeito deles, é considerado por muitos como um bom exemplo intelectual. A dúvida, ou mesmo o abandono da crença em determinada ideia, não são virtudes bem cotadas entre nós. O filósofo americano Peter Boghossian, em seu corajoso A manual for creating atheists (Pitchstone Publishing, 2013), escreve a respeito dessa questão com muita propriedade:

Enquanto sociedade, temos considerado como virtude a importância de se acreditar em alguma coisa e de defender nossas crenças. A frase comum ‘defenda aquilo que você acredita’ tem sido tomada como algo positivo – uma virtude que deveria ser aspirada por todos, e uma deficiência moral se não for seguida.
        Se alguém deveria defender ou não aquilo em que acredita, isso depende exclusivamente em 'o que' esse sujeito acredita, e porque ele acredita nisso. Ter uma firme crença não é uma virtude. Nenhuma inferência moral confiável pode ser feita a respeito de um indivíduo baseado na força de sua convicção.


        Penso que nós todos deveríamos nos esforçar sinceramente para abrir um espaço importante para o pensamento imparcial, para as boas razões e evidências em nossa maneira de interagir com o mundo e sustentar nossos juízos a respeito de qualquer assunto. Pensar bem não implica defendermos a qualquer custo aquilo em que acreditamos, mas demanda honestidade intelectual suficiente para reavaliarmos nossas posições e ideias com base nas melhores evidências disponíveis, deixando um espaço considerável para a possibilidade de estarmos errados. E, no que diz respeito à possibilidade de alguém estar errado, a honestidade intelectual deveria fazer com que todos nós constantemente nos perguntássemos: que tipo de evidência ou razão eu preciso para concluir que determinada ideia – que eu aceito há algum tempo – não é tão boa quanto eu pensava e que, por isso, eu preciso revisá-la? Se existir alguma evidência ou razão que poderia confrontar nossas crenças, e nós estamos dispostos a analisá-la, então estamos desenvolvendo uma atitude que pode nos afastar de dogmatismos e nos conduzir a um pensar melhor.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A importância de boas doses de ceticismo

O filósofo Massimo Pigliucci escreve que, certa vez, foi convidado por um programa de rádio americano para falar sobre a questão da evolução biológica e do criacionismo como explicações para a evolução da vida no planeta, um assunto bastante discutido em certas partes dos Estados Unidos, especialmente na região central do país. O outro convidado era o também cético Michael Shermer. Pigliucci afirma que o locutor do programa do qual estavam participando ficou intrigado ao perceber que os dois convidados pareciam pessoas bastante amigáveis, que sorriam e eram cordiais, ou seja, eram pessoas muito felizes para “serem céticos”.
A visão do radialista americano sobre o que é um cético é compartilhada por muita gente. Há poucos dias, a revista UFO, no Brasil, publicou em sua página do Facebook um manifesto contra os “céticos” que não aceitam que as marcas surgidas em uma plantação no interior de Santa Catarina no começo do mês sejam obras de alienígenas. O comunicado diz:

Amigos, deixando de lado estas discussões com céticos tolos, que há anos se repetem em sua incredulidade e perdem grandes chances de abrirem suas mentes para aquilo que não conseguem entender, vamos prosseguir com a conversa de maneira construtiva. Até porque, em mais de três décadas dedicadas à Ufologia, encontrei todo tipo de cético pela frente, menos um: O CÉTICO INTELIGENTE! Esse não existe, porque, quando há inteligência, não pode haver ceticismo.
Todos os céticos que conheci, infelizmente, são de uma pobreza mental de dar dó. Ultrapassados, limitados, ignorantes (no sentido de não buscarem informações que desafiem o que conhecem), ranzinzas e chatos. Deixemos os caras de lado, mas não sem antes relembrarmos a eles: moçada, Ipuaçu fica em Santa Catarina, não em Katmandu. Para se chegar lá e ver as coisas pessoalmente, há estradas e o local não é inacessível. Pode-se ir até lá por inúmeras rodovias, ok? Então, help yourself, senhores céticos!

De acordo com o texto da revista, ceticismo e inteligência são características incompatíveis. Um cético é um sujeito de mente fechada e que, por isso, não percebe quantas coisas está deixando de saber. A mente fechada é um sinal de pobreza intelectual, segue o comunicado da revista, e os céticos são também ignorantes por não buscarem informações diferentes daquelas com as quais estão familiarizados. E, obviamente, céticos são “ranzinzas e chatos”.

Uma das melhores definições a respeito do que significa ser um cético vem de Massimo Pigliucci (aqui, o autor se refere ao uso contemporâneo do termo, e não ao ceticismo radical, uma posição filosófica que sustenta que não é possível ter conhecimento do mundo): “Ser cético significa nutrir reservas razoáveis a respeito de certas afirmações. Significa querer mais evidências antes de chegar a alguma conclusão. Mais importante, significa manter uma atitude de abertura para calibrar as crenças de alguém de acordo com as evidências disponíveis”.
Contrariamente às visões comuns sobre o ceticismo, ser cético não significa ser chato, e também não significa uma obsessão por tentar mostrar que qualquer afirmativa é falsa. Significa, simplesmente, ter padrões de exigências mais refinados para aceitar alguma ideia como provavelmente verdadeira. Assim, se alguém diz que a falta de marcas aparentes de ação humana é suficiente para que se acredite que um desenho em uma lavoura de trigo foi feito por alienígenas, então, de fato, esse sujeito não é um cético, pois sua conclusão parte de evidências bastante frouxas, da aceitação de falácias filosóficas (como o apelo à ignorância) e, basicamente, de suposições fantasiosas que não recebem nenhum endosso da ciência (ex: aliens inteligentes nos visitam).
A falta de ceticismo é um dos maiores males do mundo contemporâneo, afirma o jornalista americano Guy Harrison em seu recém lançado Think: why we should question everything (Pense: por que nós deveríamos questionar tudo, publicado pela Prometheus Books nos Estados Unidos, e ainda sem edição brasileira). Tendemos a acreditar em tudo sem demandar boas razões para isso. Aceitamos tranquilamente o que um político diz somente porque ele pertence ao partido de nossa preferência. Tomamos um “complexo vitamínico” porque o anúncio que vimos na TV é bem feito, com pessoas bonitas, e a empresa afirma que irá devolver nosso dinheiro se o produto não funcionar. Acreditamos que alienígenas viajaram por distâncias inimagináveis, chegaram à Terra e aqui nos deixaram alguma mensagem (que nunca conseguimos decifrar) em plantações de trigo, e chegamos a essa conclusão porque “isso não pode ter sido feito por seres humanos.” A aceitação de ideias que provavelmente são falsas nos leva a perder dinheiro, a arriscar nossa saúde, ou simplesmente a perder tempo procurando por coisas que provavelmente nunca encontraremos, como aliens fazendo desenhos em plantações.
Harrison afirma que devemos ter uma “dose saudável de dúvida” e usarmos a razão para discernirmos entre aquilo que é provavelmente real e aquilo que não é. Isso significa não assumir que conhecemos alguma coisa sem ter boas razões que a sustentem. Essa postura cética, quando aplicada às mais diversas situações que vivenciamos, pode mudar o mundo para melhor, conclui o autor.

Parte das ideias de Harrison em Think pode ser encontrada nesse texto do autor, publicado no blog da revista Psychology Today.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O verdadeiro valor das coisas

Na década de 1920, o filósofo alemão Moritz Schlick escreveu um artigo intitulado “On the meaning of life” (“Sobre o sentido da vida”). A grande preocupação de Schlick era a de que, para muitas pessoas, o sentido da vida se encontrava no trabalho, e que não havia muito valor fora dele. O que o filósofo alemão testemunhava, na década de 1920, era uma verdadeira idolatria ao trabalho, e tal adoração persiste até os dias atuais, marcadamente em países como os Estados Unidos, mas também em regiões de colonização européia, como na serra gaúcha.
    Segundo Mark Rowlands, filósofo galês e autor do excelente O filósofo e o lobo (Objetiva, 2010), o trabalho se constitui em uma atividade que tem valor instrumental (ou extrínseco): o trabalho é bom porque a partir dele podemos conseguir outras coisas. Trabalhamos para receber o pagamento pelo trabalho que fizemos, e com o dinheiro podemos comprar aquilo que quisermos (ou pudermos), podemos viajar, podemos manter um nível de vida de certo conforto, etc. O valor do trabalho, por isso, não está nele mesmo, mas naquilo que ele nos possibilita ter ou fazer. Schlick ia além, e afirmava que o trabalho não é algo necessariamente remunerado: sempre que faço A para obter B, estou trabalhando.
    Passamos a maior parte de nossas vidas trabalhando, se considerarmos as definições apresentadas por Rowlands e Schlick. A maior parte das coisas que fazemos em nosso cotidiano vale por aquilo que elas nos possibilitam. Ligamos o aparelho televisor de nossa sala para esquecer nossos problemas. Lemos um artigo ou um livro porque temos provas a realizar, na escola ou na universidade. Caminhamos pelas ruas de nossa cidade porque queremos perder peso. Obviamente, as razões apresentadas para assistir a algo na TV, ler ou caminhar são importantes e válidas. Mas, segundo Rowlands, elas não são as melhores justificativas ou, pelo menos, elas nos afastam do maior valor que pode existir em uma leitura, ou em uma caminhada.
    Consideramos que alguma atividade tem valor intrínseco quando encontramos valor nela própria, ou seja, quando a atividade é um fim em si mesma. Mark Rowlands escreve a esse respeito em Running with the pack: thoughts from the road on meaning and mortality (Granta, 2013, ainda não publicado no Brasil), um livro que pode ser considerado como uma espécie de continuação de O filósofo e o lobo. Para Rowlands, correr é uma atividade de valor intrínseco. O autor passou boa parte de sua vida correndo em companhia de cães (e do lobo Brenin) e, com o tempo, começou a entender essa atividade como tendo um valor muito maior do que qualquer um normalmente atribuído a ela. Muitas pessoas correm para perder peso, para aliviar o estresse, ou para realizar alguma atividade social (quando correm em um grupo de pessoas – ou com os cães, como faz o filósofo), entre outros motivos. Mas sempre há um motivo para alguém correr. Rowlands afirma ter aprendido que, mais do que esses objetivos, correr pode ser algo mais. Correr com o único propósito de correr é o que tem feito o autor, apesar da dor e do mal estar que uma corrida algumas vezes causa. E correr por correr – a experiência pela experiência – é o que confere um grande significado à corrida.
    Rowlands escreve: “se queremos encontrar valor na vida, algo que poderia se apresentar como um possível sentido da vida, ou um de seus sentidos – então precisamos procurar por coisas que não têm propósito. Dito de outra maneira: a condição necessária para que alguma coisa seja realmente importante na vida é que ela não tenha um propósito fora dela mesma – que ela seja inútil para qualquer outra coisa. A inutilidade – nesse sentido – é uma condição necessária do valor real. Se o valor de algo fosse uma questão de sua utilidade para algo mais, então seria esse algo mais o centro do valor”. Assim, afirma o autor, encontrar um sentido intrínseco em boa parte das coisas que fazemos (considerando que é muito difícil, senão impossível, encontrar valor intrínseco em todas) é um dos caminhos para ter uma vida mais significativa.

   Terminei a leitura de Running with the pack e passei a pensar em como minhas atividades podem ser enquadradas em instrumentais ou de valor intrínseco. Parte significativa das coisas que faço, admito, tem valor instrumental. As faço porque preciso delas para outra coisa. Mas tenho aprendido e, principalmente, sentido, que tantas outras atividades que realizo são boas e valorosas por si mesmas. É esse o sentimento que tenho durante e depois de uma boa aula (seja eu professor ou aluno) ou da leitura de um bom livro. É assim que me sinto depois de uma caminhada com meus cães. É assim também quando converso com alguém sobre algum tema interessante. É assim quando sento ao lado de minha namorada, ou de meus pais, para tomar um chimarrão. E, por isso, dou razão a Rowlands quando ele afirma que a vida passa a ter mais significado quando extraímos mais sentido das coisas que fazemos.

domingo, 15 de setembro de 2013

O dragão na minha garagem

“O dragão na minha garagem” é o título do capítulo 10 de O Mundo Assombrado Pelos Demônios: a ciência vista como uma vela no escuro (Companhia das Letras, 1996, editada posteriormente pela Companhia de Bolso), de Carl Sagan, um clássico do pensamento cético e um dos livros de divulgação científica mais importantes das últimas décadas. A ideia geral do capítulo (retomada por Sagan em vários outros pontos do livro) é: por que eu deveria acreditar em alguma coisa, especialmente se ela é extraordinária, como unicórnios ou o monstro do Lago Ness? Se não há boas evidências de que algo exista, é razoável tomar isso como verdade? E, considerando tudo aquilo em que acreditamos, temos boas razões para sustentar nossas crenças? Estabelecemos critérios mínimos para aceitar algo, ou acreditamos naquilo que nos parece melhor e mais confortável? Mais: temos disposição e atitude crítica para analisar argumentos e evidências que são contrárias (e, talvez, mais fortes e convincentes) a nossas tão estimadas verdades?
Abaixo, um trecho de “O dragão na minha garagem”, do excelente livro de Sagan:


– Um dragão que cospe fogo pelas ventas vive na minha garagem.
Suponhamos (estou seguindo uma abordagem de terapia de grupo proposta pelo psicólogo Richard Franklin) que eu lhe faça seriamente essa afirmação. Com certeza você iria querer verificá-la, ver por si mesmo. São inumeráveis as histórias de dragões no decorrer dos séculos, mas não há evidências reais. Que oportunidade!
– Mostre-me – você diz. Eu o levo até a minha garagem. Você olha para dentro e vê uma escada de mão, latas de tinta vazias, um velho triciclo, mas nada de dragão.
– Onde está o dragão? – você pergunta.
– Oh, está ali – respondo, acenando vagamente. – Esqueci de lhe dizer que é um dragão invisível.
Você propõe espalhar farinha no chão da garagem para tornar visíveis as pegadas do dragão.
– Boa idéia – digo eu –, mas esse dragão flutua no ar.
Então você quer usar um sensor infravermelho para detectar o fogo invisível.
– Boa idéia, mas o fogo invisível é também desprovido de calor.
Você quer borrifar o dragão com tinta para tomá-lo visível.
– Boa idéia, só que é um dragão incorpóreo e a tinta não vai aderir.
E assim por diante. Eu me oponho a todo teste físico que você propõe com uma explicação especial de por que não vai funcionar.
Ora, qual é a diferença entre um dragão invisível, incorpóreo, flutuante, que cospe fogo atérmico, e um dragão inexistente? Se não há como refutar a minha afirmação, se nenhum experimento concebível vale contra ela, o que significa dizer que o meu dragão existe? A sua incapacidade de invalidar a minha hipótese não é absolutamente a mesma coisa que provar a veracidade dela. Alegações que não podem ser testadas, afirmações imunes a refutações não possuem caráter verídico, seja qual for o valor que possam ter por nos inspirar ou estimular nosso sentimento de admiração. O que estou pedindo a você é tão-somente que, em face da ausência de evidências, acredite na minha palavra.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

O caminho da ciência

Agora, mais do que nunca, nós precisamos reconhecer que a alfabetização científica e o pensamento crítico não são somente ferramentas para os cientistas profissionais; eles são habilidades vitais básicas, tão vitais para nosso crescimento pessoal e intelectual quanto a leitura, a escrita e a aritmética. E, contrariamente à crença popular, os fundamentos da atividade científica e do pensamento crítico são conceitos que podem ser bem assimilados pelo intelecto médio

... E mesmo assim, apesar das montanhas de evidências que atestam o poder sem-igual do método científico em separar fato de fantasia, a ideia de que a ciência possa oferecer a descrição mais precisa da condição humana, e assim prover a melhor medida de nossas obrigações morais, é uma noção que muitas poucas pessoas estão preparadas para sequer considerar, muito menos aceitar

... E, pior de tudo, nossa incapacidade de promover as capacidades de pensamento crítico desde as primeiras séries escolares mina nossa habilidade, enquanto seres humanos racionais, de examinar velhas suposições à luz de novas evidências, e de ajustar nosso pensamento de acordo com isso, aspectos que tornam o progresso intelectual e moral possível

Considere a teoria atômica, por exemplo. Mesmo que ninguém tenha realmente visto um átomo, este conceito recebe aceitação universal não somente por causa de seu impressionante registro empírico mas, mais importante, porque muitas poucas pessoas consideram a existência de átomos e quarks pessoalmente ofensiva.
        ...Ainda assim, milhões de americanos sentem-se perfeitamente justificados ao ignorar a evolução, como se eles estivessem escolhendo em um menu de teorias científicas e descartando aquelas que eles pessoalmente consideram desagradáveis... Essa atitude à la carte com relação às ciências em geral, e a evolução, em particular, é inquietantemente comum, e quase que certamente deriva de vieses culturais antigos, que dispensavam o exame crítico em uma população mal informada

Trechos de The way of science: finding truth and meaning in a scientific worldview (O caminho da ciência: encontrando verdade e significado em uma visão de mundo científica, ainda não lançado no Brasil), escrito pelo biomédico Dennis Trumble e publicado pela Prometheus Books em 2013.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

O mundo não acabou, mas fomos apresentados à dissonância cognitiva

Nos anos 1950, uma dona de casa americana chamada Dorothy Martin ganhou notoriedade ao afirmar que o mundo acabaria através de uma grande enchente antes do amanhecer do dia 21 de dezembro de 1954. A teoria de Martin, por si só esquisita, ganhou uma conotação ainda mais bizarra quando a mulher revelou a fonte da informação: extraterrestres de um planeta denominado Clarion haviam lhe avisado a respeito do fim do mundo. Os alienígenas foram mais longe, e comunicaram a Dorothy que ela e mais um grupo de pessoas que deveria se juntar a ela (os “verdadeiros crentes”) seriam levados por uma nave extraterrestre e salvos do apocalipse. Muitas pessoas abandonaram seus empregos e suas famílias para se juntar à Dorothy, e a espera pelo fim do mundo – e pela vinda do disco voador – havia começado.
        Leon Festinger, um jovem psicólogo cognitivo, ficou bastante interessado pelo grupo de Martin (ele havia lido sobre o caso em um jornal). Festinger não acreditava que o mundo iria acabar, mas sabia que aquela era uma oportunidade muito boa para se observar e coletar informações a respeito de como as pessoas justificam e adaptam as suas crenças aos fatos. Assim, Festinger estaria atento às justificativas que seriam apresentadas pelos líderes do grupo, especialmente Dorothy Martin, sobre a razão de o mundo não ter acabado como se previa, e nem os extraterrestres aparecido. Festinger se infiltrou no grupo e passou a acompanhar os momentos derradeiros. Uma breve descrição daquilo que Festinger observou nos dias anteriores e posteriores ao esperado apocalipse pode ser lida na Wikipédia:
- antes de 20 de dezembro de 1954: o grupo evita publicidade. O grupo desenvolve um sistema de crenças – obtido do planeta Clarion através de psicografia – para explicar os detalhes do cataclismo, as razões para sua ocorrência, e a maneira pela qual o grupo poderia escapar do desastre
- 20 de dezembro: o grupo espera que um visitante de outro planeta apareça e os acompanhe até uma espaçonave. Para isso, os membros do grupo precisam se desfazer de quaisquer objetos metálicos. As pessoas descartam objetos que possuem peças metálicas e aguardam os alienígenas
- 00h05min de 21 de dezembro: nenhum extraterrestre aparece. Alguém nota que um relógio marca 23h55min, e então o grupo concorda que ainda não é meia-noite
- 00h10min: todos os relógios já marcam meia noite, e ainda nenhum visitante apareceu. O grupo espera em silêncio, pois o cataclismo vai ocorrer em menos de sete horas
- 4h: o grupo está sentado e em completo silêncio. Algumas tentativas de encontrar explicações para o não aparecimento dos alienígenas falham. Martin começa a chorar
- 4h45min: outra mensagem é psicografada por Dorothy Martin. Ela diz que o Deus da Terra decidiu livrar o planeta da destruição. O cataclismo foi cancelado. A explicação: “O pequeno grupo de pessoas, sentado a noite inteira, tinha espalhado tanta luz que Deus decidiu salvar o mundo da destruição”
- tarde de 21 de dezembro: contrariamente ao que ocorria antes, o grupo chama a imprensa. Sua mensagem deve ser espalhada pelo mundo inteiro.
        O final do mundo não ocorreu, como alardeava o grupo de Dorothy Martin. Ao invés de um pedido de desculpas pela besteira ou, pelo menos, de um simples “eu estava enganada” ou “me iludi, isso pode acontecer com qualquer um”, Martin ajustou a sua crença com o inescapável fato de que o mundo continuava como antes. Agora, os aliens haviam avisado que foi a boa energia do grupo da dona-de-casa que tinha salvado o mundo. Se não fosse essa a justificativa usada, certamente outras seriam inventadas.
        Em 1956, Festinger publicou When Profecy Fails, obra que trata da história do grupo de Martin – o autor usou pseudônimos para os personagens: Dorothy Martin virou Marian Keech –, e cunhou o termo que representaria um dos fenômenos mais estudados na psicologia social da segunda metade do século XX: a dissonância cognitiva.
        Experimentamos a dissonância cognitiva quando tentamos sustentar ideias, crenças ou opiniões incompatíveis entre si, ou que não são compatíveis com informações e evidências que recebemos de outras fontes. Assim, um sujeito que joga lixo no chão e se justifica dizendo que os responsáveis pela poluição são as grandes empresas está amarrado pela dissonância cognitiva. Você comprou um aparelho de celular novo, pagou muito caro por ele, mas ele não é tão bom quanto você imaginava que fosse. Aí, um amigo lhe pede sobre a qualidade do celular. Você provavelmente vai elogiar o aparelho, minimizar os defeitos, ou mesmo não reconhecê-los.
        A dissonância cognitiva é utilizada por qualquer pessoa nas mais diversas situações do cotidiano. Esse é um recurso cognitivo absolutamente normal, e sem ele nós provavelmente enlouqueceríamos. No entanto, a dissonância cognitiva pode ser perigosa se nos mantiver em uma situação parecida com a dos seguidores do grupo de Dorothy Martin ou, em um exemplo mais extremo, se nos fizer embarcar em uma viagem sem volta junto ao líder de uma seita, como as mais de 900 pessoas que seguiram Jim Jones à Guiana na década de 1970.
        O filósofo inglês Stephen Law afirmaria que as pessoas que seguiram líderes como Martin e Jones caíram em “buracos negros intelectuais”. Buracos negros intelectuais são sistemas de crença nos quais seus seguidores ficam presos, mesmo que não percebam. Quando confrontados com a realidade (o mundo não acabou!), essas pessoas procuram maneiras de enfrentar os novos fatos sem que seja necessário desfazerem-se de suas crenças anteriores. Uma vez dentro de um buraco intelectual é difícil sair dele, porque a influência de mecanismos psicológicos como a dissonância cognitiva é muito forte.
        Apesar de se aplicarem a determinados cultos religiosos, os buracos negros intelectuais não se restringem a eles. Recentemente, o Ministério Público Federal denunciou algumas empresas por manterem um suposto esquema de pirâmide financeira, não sustentável a longo prazo porque a sua manutenção implica na entrada do dinheiro de novos investidores. Quem, no Facebook, visita a página de qualquer uma das empresas envolvidas no suposto esquema vai encontrar uma série de comentários de seus investidores. É raro encontrar alguém que duvide das empresas. Assim, teorias da conspiração envolvendo políticos, ministros, empresas de telefonia, procuradores de justiça e advogados parecem muito mais plausíveis do que simplesmente admitir que o sujeito foi envolvido em um golpe.



        Stephen Law trata de algumas armadilhas de pensamento em Believing Bullshit: how not to get sucked into an intellectual black hole (Prometheus Books, 2011, sem tradução para o português). Um livro recentemente lançado no Brasil, A Arte de Pensar Claramente: como evitar as armadilhas do pensamento e tomar decisões de forma mais eficaz (Objetiva, 2013), de Rolf Dobelli, traz uma lista de vieses e tendências de pensamento que muitas vezes nos põem em situações complicadas. A dissonância cognitiva é um dos temas tratados nessa obra. Outra boa leitura sobre a dissonância cognitiva e outros vieses psicológicos é Ideias Próprias: como o cérebro distorce a realidade e o engana (Difel, 2008), de Cordelia Fine.


sábado, 10 de agosto de 2013

Conversando com Massimo Pigliucci

O biólogo e filósofo ítalo-americano Massimo Pigliucci é um sujeito de múltiplos interesses. Professor na City University of New York, Pigliucci realiza pesquisas e escreve sobre genética, biologia evolutiva e filosofia da ciência e, além da carreira acadêmica, escreve para o público geral em seu blog, Rationally Speaking, e em sua página na internet, Plato’s Footnote (uma fonte riquíssima em recursos – há artigos, palestras e textos do autor disponíveis para download). Pigliucci é também autor de excelentes livros sobre ciência e filosofia, entre os quais Answers for Aristotle: how science and philosphy can lead us to a more meaningful life, Denying evolution: creationism, scientism, and the nature of science, Tales of the rational: skeptical essays about nature and science, e Nonsense on stilts: how to tell science from the bunk (nenhuma das obras foi publicada no Brasil). O autor, que é também um grande defensor da educação científica contra a superstição e as pseudociências, gentilmente aceitou o convite do blog para falar sobre alguns temas comumente presentes em seus escritos.

Página Virada: O que você está lendo agora?
Massimo Pigliucci: Hitler’s Philosophers, de Yvonne Sherratt (obra ainda não lançada no Brasil), um olhar fascinante a respeito de como os nazistas faziam mau uso da filosofia (por exemplo, de Kant e Nietzsche), mas também sobre como filósofos estavam explicitamente envolvidos com a máquina de propaganda nazista (p. ex., Heidegger). Há muitas boas lições, tanto de história quanto do papel da filosofia, para serem aprendidas neste livro.

PV: Que livros o influenciaram?
MP: Muitos, certamente. Mas acima da maioria estão a Autobiografia de Bertrand Russell, que me introduziu à filosofia quando eu era um adolescente; O Mundo Assombrado Pelos Demônios de Carl Sagan, ainda hoje um dos melhores trabalhos populares sobre pseudociência e pensamento crítico; Investigação Sobre o Entendimento Humano, de David Hume, certamente um dos melhores e mais acessíveis trabalhos de filosofia; Eutífron de Platão, um diálogo curto deliciosamente escrito sobre a relação entre religião e moralidade; Advice to a Young Scientist, de Peter Medawar (obra não lançada no Brasil), que eu li antes de ir à universidade; e um grande número de livros de Stephen Jay Gould, que foi meu modelo intelectual durante os primeiros anos de minha carreira como biólogo evolucionista.

PV: Como o ato de ler pode ser importante para a vida de alguém?
MP: E como não seria? Através da leitura, nós entramos em uma conversa com algumas das melhores mentes que a humanidade produziu através de toda a história registrada. Não há simplesmente nada semelhante a esse tipo de experiência.

PV: Pessoas como Deepak Chopra e Fritjof Capra têm escrito livros sobre ciência e espiritualidade, mas a visão deles a respeito de muitas questões difere em muito do consenso da comunidade científica em diversas áreas. Em sua opinião, o trabalho de autores como Chopra e Capra contribui para disseminar a ciência para o público, ou faz o oposto, confundindo as pessoas e criando uma falsa ideia sobre o que a ciência é?
MP: Não consigo falar coisas ruins o suficiente a respeito de Chopra. Ele é um charlatão que presta um desserviço ao público. Quanto à Capra, não posso fazer melhor que Victor Stenger, quando caracterizou o seu trabalho (e o de Chopra) como “charlatanismo quântico” (quantum quackery) na Skeptical Inquirer.

PV: Algumas pessoas acreditam que há uma razão ou um propósito para tudo o que acontece conosco, e essas razões e propósitos estão ligados a algum tipo de “desejo divino” ou a um “plano espiritual”. Muitas dessas pessoas não podem sequer conceber a ideia de que talvez não exista um deus ou uma recompensa após a morte. Se não existir um deus ou um plano espiritual, alguns deles dizem, não há razão para estarmos aqui, e nossas vidas não têm sentido. O que um filósofo tem a dizer sobre isso?
MP: Creio que essas pessoas cedem ao mais profundo tipo de orgulho: esperar que o próprio universo (ou Deus) deveria se preocupar com o que acontece com eles, senão nada tem valor! Sentido na vida – como eu argumentei em meu Answers for Aristotle (obra ainda não publicada no Brasil, e que será discutida em breve aqui no blog) – vem de dentro, não de fora. Nós construímos sentido a partir de nossos projetos de vida, incluindo nossas relações com outros seres humanos. Por que razão isso não seria suficiente?

PV: Aqui no Brasil, as pessoas frequentemente reclamam da qualidade dos políticos. Sempre lemos a respeito de corrupção, mau uso de recursos públicos, incompetência, administradores que são analfabetos, outros que trabalham para as pessoas de seus partidos políticos, e assim por diante. É possível que os eleitores enfrentem esses problemas pensando criticamente? Como?
MP: Ah, não é só no Brasil. Acredito que esse seja um esporte internacional, e infelizmente os políticos do mundo todo continuam nos dando várias razões para pensar assim. Sim, claro, a educação e o pensamento crítico são ferramentas cruciais para se navegar em um mundo complexo, incluindo o mundo da política. Infelizmente, nós raramente ensinamos o pensamento crítico, e ele não vem naturalmente aos seres humanos. O que você me pergunta é uma questão complexa, e não há uma simples resposta, mas eu aconselharia os seus leitores para que continuem lendo, ampla e criticamente, sem deixarem-se cair em um cinismo auto-destrutivo. É um balanço difícil de manter.

PV: Para aqueles que querem ler boas obras de ciência e filosofia, mas não conhecem muito bem essas áreas, que autores ou livros você recomendaria?
MP: Bem, praticamente os mesmos que eu mencionei na resposta à sua primeira questão, creio. Nós vivemos em uma época em que bons livros a respeito de todo o tipo de assunto estão disponíveis ao pressionar de uma tecla (pelo menos para aqueles de nós que são sortudos o suficiente para serem alfabetizados, terem um conexão com a internet e dinheiro suficiente para investir – o que deixa a maior parte da população mundial de fora!). Então, que usemos essa sorte e a espalhemos: maior grau de instrução no mundo inteiro é um fator importante para enfrentar a pobreza, a violência e a superstição.

sexta-feira, 19 de julho de 2013

Truques da Mente

Há séculos, nossos sistemas de percepção do mundo têm sido enganados de forma proposital por artistas talentosos. Os grandes mestres da pintura sabem como utilizar tonalidades distintas de cores, entre outros recursos, para nos dar a sensação de que estamos vendo uma paisagem em profundidade quando olhamos para uma tela. Produções de cinema usam sons, combinações de luzes, efeitos tridimensionais e animações computadorizadas para dar um ar especial a seus filmes, o que faz com que fiquemos assombrados com a qualidade daquilo que vemos, um espetáculo para nossos olhos e ouvidos. Na verdade, qualquer pessoa que liga um aparelho televisor vai ficar imersa em uma combinação de imagens e sons que irão estimular de tal modo seus sentidos que muitos detalhes passarão despercebidos, como os comuns erros de continuidade em filmes (personagens cujas roupas mudam de cor subitamente, mudanças em objetos no cenário, etc.).
        O francês Ernest Ostrowsky, sua mulher e seu filho também são mestres na arte de enganar nossos sentidos, mas não através de pinturas ou da televisão. A família Ostrowsky é composta por mágicos, e seu mais famoso número, chamado “Omar Pasha”, é uma das apresentações mais impressionantes que eu já vi. “Omar Pasha” é um número de teatro negro, ou seja, um número encenado em um palco totalmente negro, iluminado com luzes negras. No palco, um homem (Omar Pasha) vestido com uma roupa branca, capa vermelha e com um turbante aparece ao som do Bolero de Maurice Ravel. Pasha começa, então, a interagir com o cenário, “desenhando” um grande candelabro com velas vermelhas, usando para isso uma caneta que ele tira do turbante. Para espanto do público, o candelabro de Pasha se transforma em um objeto real, e o homem o levanta, leva para outro lado do cenário e ainda acende as três velas que estão na parte superior do objeto. O truque do candelabro é o primeiro de uma sequência inacreditável, que inclui o surgimento e desaparecimento de objetos grandes como cadeiras, a aparição de pessoas, e até uma decapitação. A primeira pergunta que a maioria das pessoas deve se fazer depois de assistir à apresentação de Omar Pasha é: “como ele faz isso?” E como o público não percebe os truques?
        Famosos mágicos contemporâneos, como os da família Ostrowsky, Penn & Teller, David Copperfield, David Blaine e Criss Angel seguem a tradição dos mestres da magia, como Harry “O Grande” Houdini, um dos maiores da história nessa arte. E, da mesma maneira que Houdini, os melhores mágicos de hoje não podem contar apenas com habilidade manual, rapidez e perspicácia, embora esses sejam requisitos básicos de um grande mágico. Mestres da magia também precisam conhecer como as pessoas reagem aos truques, e de que forma seus sistemas de percepção podem ser ludibriados. Omar Pasha apela a um grande número de estímulos visuais, e a escuridão do cenário é o ponto crucial de toda sua apresentação. Talvez as pessoas que assistem ao número até desconfiem de como ele é realizado, mas os truques se desenrolam com tamanha naturalidade e em um ritmo elaborado de modo a impossibilitar aos espectadores que descubram os segredos de Pasha.

        Os neurologistas Stephen Macknik e Susana Martinez-Conde têm acompanhado os números de mágica há algum tempo, pois pensam que eles podem revelar muito a respeito de como pensamos e vemos o mundo – e de como podemos ser enganados por nossas próprias percepções. As ideias de Macknik e Martinez-Conde sobre a relação entre a mágica e as nossas percepções estão no ótimo Truques da Mente: o que a mágica revela sobre o nosso cérebro (Editora Zahar, 2011). “O que você vê, ouve, sente e pensa se baseia no que espera ver, ouvir, sentir e pensar”, escrevem os autores. E é bom estarmos cientes disso, pois não são somente os mágicos que lucram com nossas fraquezas de percepção.

O teatro de Omar Pasha


O truque do avarento


Um bom acervo de vídeos sobre mágica e neurociência está disponível no site dos autores de Truques da Mente. Para acessá-lo, clique aqui.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Perdendo o futuro

O filósofo Mark Rowlands escreve a respeito da morte em Scifi = scifilo, e discute se ela pode ser ruim por nos privar de algo que almejamos boa parte de nossa vida, e de coisas para as quais dedicamos muitos de nossos esforços. Alguém que tem uma vida orientada para o futuro, argumenta Rowlands, tem o que ele chama de um “futuro forte”. Um sujeito que não investe em seu futuro, e não se preocupa com ele, tem, por sua vez, um “futuro fraco”. Rowlands usa os dois termos para apresentar algumas de suas ideias sobre a morte. O autor, em O Filósofo e o Lobo, obra escrita posteriormente à Scifi = scifilo, descarta boa parte das coisas que escreveu sobre os futuros fraco e forte. A convivência com o lobo Brenin parece ter feito Rowlands reconsiderar a ideia de que a morte não é, por si só, ruim para os animais, indivíduos que ele imaginava possuírem um futuro fraco. O trecho abaixo foi extraído do livro Scifi = scifilo:

A morte é uma coisa ruim porque nos priva de um futuro. Todavia, vemos agora que é possível ter um futuro de duas maneiras diferentes, uma forte e outra fraca. Isto faz diferença para o caráter danoso ou ruim da morte? Seria a morte pior para alguém que possui um futuro forte que para alguém que só tem um futuro fraco?
        Acredito que sim. Alguém que possui um futuro forte, orientando muito de seu comportamento presente e disciplinando muitos de seus desejos presentes rumo a uma concepção de como esta pessoa quer que seu futuro seja, é mais fortemente ligado ao seu futuro que alguém que tem apenas um futuro fraco. Logo, uma pessoa que tem um futuro forte tem mais a perder, ao perder um futuro, que uma pessoa que possui apenas um futuro fraco.
        Se isto não ficou claro, considere o exemplo seguinte: duas pessoas vão às Olimpíadas competir no triatlo. Uma delas treinou por anos, orientou sua vida, organizou seu comportamento e disciplinou seus desejos para atingir esse objetivo. A outra é uma atleta preguiçosa e incapaz que chegou aos jogos olímpicos, vamos supor, através de um erro de identificação. Nenhuma das duas ganha uma medalha. Às vezes falamos que alguém “perdeu” a medalha. Se isto é realmente uma perda, então aparentemente a perda maior é sofrida pela primeira atleta, já que ela organizou sua vida ao redor desta meta. Muito de sua vida foi vivida por causa deste objetivo futuro, que ela não atingiu. Ela tinha claramente mais dela mesma investido em conseguir a medalha que a outra atleta. Logo, sua perda é maior.
        Estou argumentando de maneira semelhante ao prejuízo envolvido em perder um futuro. Quanto mais você tiver investido no futuro, julgando em termos de organização, orientação, disciplinamento e arregimentação de seu comportamento e desejos presentes, mais você perde quando perde tal futuro. Se você tem um futuro num sentido conceitual, ou forte, então, quando você morre você perde mais do que se você possuísse um futuro apenas no sentido fraco, não-conceitual. A morte é um prejuízo maior para aqueles que têm um futuro forte, pois na morte eles perdem mais que aqueles que possuem um futuro apenas fraco.



Extraído de ROWLANDS, M. Scifi = scifilo: a filosofia explicada pelos filmes de ficção científica. Rio de Janeiro: Relume, 2005.

segunda-feira, 8 de julho de 2013

A moralidade nas ações de efeitos mínimos

Francisco de Assis, CEO do grupo ambientalista Companheiros da Terra (CDT), foi sequestrado por um bando de pinguins-imperadores, irritados com a sua campanha em torno do aquecimento global, pois ela está atrapalhando o prazer dos pinguins de viajar de avião por baixos preços e dirigir na neve. Os pinguins descobriram que suas nadadeiras não servem para segurar armas, então preferem um confronto não violento com o CDT. Esperam usar argumentos racionais para persuadir Francisco de que sua organização está equivocada. Contrataram, para isso, Peripatético, um pinguim-rei filósofo, para conversar com Francisco e fazê-lo mudar de ideia.

Peripatético: Sua organização tem um compromisso com o princípio de que todos nós contribuímos para a mudança climática e que somos, portanto, moralmente responsáveis por suas consequências, certo?
Francisco: Sim, Peripatético. Todos temos nossa pegada de carbono, que é a quantidade de gases de efeito estufa que cada indivíduo emite direta e indiretamente. Sabemos que essas emissões contribuem para o aquecimento global produzido pelo homem e pelo pinguim. Sabemos que o aquecimento global causará tamanho impacto ambiental que o sofrimento será sentido no futuro. Por isso, somos todos moralmente responsáveis por esse sofrimento futuro e precisamos tomar medidas para minimizá-lo.
Peripatético: Então, o que você está dizendo é que, se eu parar de usar meu desodorante debaixo das nadadeiras e não voar para ver meus primos no Havaí, menos pessoas sofrerão no futuro?
Francisco: Não, não é isso. Estou dizendo que, se todos nós tentarmos minimizar nossa pegada de carbono, menos pessoas sofrerão no futuro.
Peripatético: Interessante. Será que a minha pegada de carbono é tão relevante que, se não houvesse, teria menos aquecimento global e, portanto, menos sofrimento no futuro?
Francisco: Não. O efeito de um único indivíduo é ínfimo no aquecimento global. Mas, se você multiplicá-lo pela população mundial – mais de 6 bilhões de pessoas –, teremos um efeito grande.
Peripatético: Então, na verdade, se eu continuar fazendo o que faço, viajando de avião e dirigindo na neve, além dos churrascos, não causarei nenhum sofrimento adicional no futuro? Você mesmo admite que o efeito de um único indivíduo no aquecimento global é desprezível, certo? [A plateia de pinguins aplaude calorosamente.]

Peripatético está certo ao sugerir que nenhum indivíduo, isoladamente, é responsável por quaisquer consequências do aquecimento global?


Extraído de STANGROOM, J. O dilema de Einstein: exercite sua inteligência com questões que desafiam o bom senso. São Paulo: Editora Marco Zero, 2011.

sábado, 18 de maio de 2013

Bullspotting: encontrando fatos em uma era de desinformação


O presidente iraniano Mahmoud Ahmadinejad defende, entre outras posições polêmicas, que o holocausto não ocorreu da maneira como é comumente descrito nos livros de história. A ideia de Ahmadinejad não deriva de um espírito questionador que busca saber a verdade, mas de uma posição ideologicamente estruturada contra Israel e o povo judeu. Por mais estranha que pareça, a posição do presidente iraniano é compartilhada por alguns grupos em diversos lugares do mundo, inclusive no Rio Grande do Sul. Em nosso estado, uma editora chamada Revisão publicou livros referentes ao holocausto e com temas antissemitas e nazistas. Uma das obras editadas foi Os Protocolos dos Sábios de Sião, uma fraude conspiracionista cuja ideia principal era expor um plano judeu de dominação mundial – um plano falso, obviamente.
   Indivíduos que negam a existência do holocausto como ele tem sido retratado em documentos e livros históricos costumam denominar a si mesmos de “revisionistas”, embora exista um nome melhor para eles: negadores da história. O revisionismo é uma atividade absolutamente válida na história, nas ciências e em qualquer outra área do conhecimento humano. No entanto, quando há um grande número de evidências de que determinado fato ocorreu (no caso do holocausto, somam-se um grande número de documentos, evidências físicas – covas, corpos, campos de concentração –, informações fornecidas por membros do próprio regime nazista, listas de pessoas desaparecidas na época, os testemunhos do Julgamento de Nuremberg, depoimentos de testemunhas que escaparam da morte e de soldados aliados, etc.), e a revisão é feita no sentido de provar que tais eventos nunca aconteceram, o que temos é pura e simplesmente a negação da história.
   A questão da negação do holocausto é tratada com muita propriedade por Loren Collins em Bullspotting: finding facts in the age of misinformation (Prometheus Books, 2012, ainda sem edição no Brasil). Collins é um advogado americano que fundou o blog Barackryphal, no qual rebate as ideias dos “birthers”, pessoas que afirmam que o presidente americano Barak Obama teria nascido no Quênia e, assim, estaria impedido de assumir o seu posto atual, dado que a lei americana não permite que cidadãos nascidos em outros países tornem-se presidentes dos EUA. O tema do local de nascimento de Obama junta-se à questão do holocausto como exemplos de negação da história, rumores infundados e teorias conspiracionistas. Collins vai além, e em seu livro trata também de pseudociência (como a homeopatia e a ufologia) e da pseudo-história (escrevendo sobre Nostradamus, Atlântida, a vinda de chineses à América antes de Colombo, a Terra plana, etc.), discutindo, ao final, sobre os potenciais perigos aos quais alguém se expõe quando se deixa envolver por ideias falsas.
   Ler um texto como o de Collins é algo bastante desejável em uma época como a nossa, na qual o fluxo de informação excede em muito a nossa capacidade de apurar as histórias de maneira criteriosa. No Facebook, por exemplo, somos inundados de pedidos de compartilhamento de fotos, que supostamente irão ajudar crianças; outras pessoas nos encaminham notícias dando conta que a Interpol descobriu um desvio de mais de 500 bilhões de reais em nome de integrantes do PT (é o que diz uma capa falsificada da revista Veja); outros defendem ideias políticas esquisitas, como a redução de cargos de confiança em um órgão público se determinado partido político o assumir (quando uma boa pesquisa na internet seria suficiente para fornecer evidências que tal partido, na verdade, age de maneira oposta). Enfim, duvidar, questionar e buscar a boa informação são formas de defesa contra o mundo de desinformação que nos rodeia. E, quando a desinformação é propositalmente espalhada na internet, defender-se dela é a melhor atitude para escapar da manipulação intelectual.

sábado, 20 de abril de 2013

Salvem os professores!


O jornal Correio Brasiliense trouxe, em sua edição do dia 08 de abril, uma notícia preocupante: quase 40 mil alunos do Ensino Superior que cursavam alguma licenciatura (curso que forma professores para atuação nos Ensinos Fundamental e Médio) desistiram do magistério mesmo antes de terminarem a graduação. No caso de cursos de licenciatura em Física, um terço dos alunos decidiu mudar de rumos, trocando a possibilidade de atuar como professores em escolas pela oportunidade de trabalhar em uma área diferente, e possivelmente melhor remunerada.
   Pense, prezado leitor, por um momento a respeito da seguinte questão: quais são os fatores que levam alguém a escolher determinada profissão? A remuneração? As condições de trabalho? Uma jornada de trabalho adequada? Um ambiente de trabalho tranquilo? O reconhecimento social da importância da profissão? O amor pela profissão? A realização pessoal por se fazer algo que a própria pessoa considera importante? No caso dos professores, penso que somente as duas últimas perguntas podem nos fornecer respostas razoáveis sobre o porque de alguém querer trabalhar em uma escola brasileira.
   Quando ouvimos protestos em favor de melhorias na educação, na maioria das vezes os relacionamos às lutas dos docentes pelo aumento de seus salários. É, obviamente, uma causa mais do que justa, e que ainda não foi atendida plenamente por nenhum governo aqui no Brasil. Além disso, temos que levar em conta que melhorias na educação não passam apenas por incrementos salariais. Há um mundo de coisas para se modificar, e uma análise breve do dia-a-dia dos professores pode nos dar algumas pistas a respeito dos aspectos sobre o quais temos que prestar atenção.
   Um desses aspectos é o escopo de atuação de um docente. Se há algumas décadas, o maior foco do professor era em como discutir os assuntos da aula com seus estudantes, hoje a situação é outra. Um professor, nos dias atuais, não pode se preocupar apenas em trabalhar os temas de suas aulas com os alunos. Ele também se obriga a abraçar problemas que não são, necessariamente, seus. Assim, um professor atua como pai e mãe de um aluno ao apresentar a ele normas básicas de convivência social, de respeito aos professores, colegas e funcionários da escola, e de como agir com um mínimo de civilidade quando se convive com outras pessoas. Tarefas como essa já são por si sós complexas, e ainda há o agravante que, geralmente, o professor não precisa substituir os pais de apenas um aluno, mas de dezenas deles na tarefa de ensinar aspectos fundamentais da vida em sociedade. “E as famílias, onde estão?”, alguém poderia perguntar, e a resposta talvez fosse “muitas delas estão se preocupando com alguma outra coisa”. Para muitos pais e mães, as escolas não passam de creches para adolescentes.
   O professor é, para mim, o mais corajoso dos profissionais. Somente alguém com uma tendência a comportamentos heróicos pode aguentar uma jornada de 40 horas semanais na sala de aula (e outras tantas horas em casa, preparando e corrigindo trabalhos), trabalhando com um número cada vez maior de adolescentes indisciplinados, perdendo a voz, o sossego e, muitas vezes, a paciência. A recompensa é um salário mirrado no final de cada mês, e poucas palavras de agradecimento de pais e mães.
   Sem dúvida, o cotidiano escolar nem sempre apresenta situações como as que eu descrevi acima, e a vida dos professores não é o roteiro de uma tragédia. Mesmo assim, temo que estamos nos encaminhando para uma era na qual os professores são considerados responsáveis por tudo o que ocorre na escola, da nota dos alunos aos conflitos que ocorrem na instituição. Está na hora de exigirmos mais da sociedade, das famílias e dos alunos, e isso não deve ser feito para diminuir a responsabilidade dos professores, mas para redistribuí-la com justiça entre os docentes e os demais sujeitos que participam do cotidiano escolar.

domingo, 14 de abril de 2013

Velhos Tempos, Belos Dias: o conjunto Blue Moon nos incríveis anos sessenta

A década de 1960 foi, em termos de música popular, o mais brilhante período do século passado. Nunca, na história contemporânea, vimos artistas tão bons como os daquela época. Beatles, Rolling Stones, Pink Floyd, Beach Boys, Creedence, Simon & Garfunkel, Eric Clapton e Rod Stewart, entre vários outros, faziam a cabeça dos apaixonados pelo rock em todo o mundo. No Brasil, havia a Jovem Guarda, com o rei Roberto, Erasmo Carlos e Os Incríveis.
   No interior do Rio Grande do Sul, jovens se organizavam em conjuntos, animados com a possibilidade de levar a música a outras pessoas e de imitar os seus heróis. Ao final de uma década na qual o Brasil passou a ser mais uma ditadura na América do Sul, e a liberdade civil foi cerceada, a música era também um dos meios encontrados para que as pessoas pudessem se expressar. No entanto, a possibilidade de encontro com outras pessoas ao som de uma boa música, em um baile, era um dos principais motivos para os artistas de então.
   Nesse contexto surgiu o Blue Moon, um conjunto de Veranópolis que levou a boa música a várias cidades de nosso estado. O nome do grupo foi extraído de uma famosa canção de mesmo nome, composta em 1934 por Richard Rodgers e Lorenz Hart, e executada por um grande número de artistas, como Elvis Presley, Bob Dylan, Frank Sinatra, Cliff Richard e Rod Stewart. O nome em inglês também refletia uma tendência da época, mesmo para conjuntos brasileiros.
   Tendo que conviver com as limitações impostas a músicos que vivessem no interior gaúcho na década de 1960 (os instrumentos eram caros, assim como caixas de som e outros aparatos importantes, era difícil conseguir as cifras das músicas e as letras em inglês, as estradas eram precárias, a Kombi, desconfortável,...), o Blue Moon teve uma passagem marcante pelo cenário cultural de Veranópolis e da Serra Gaúcha, e deixou saudades entre aqueles que tiveram a chance de acompanhar a performance do conjunto.
   Em Velhos Tempos, Belos Dias: o conjunto Blue Moon nos incríveis anos sessenta (Editora do Maneco, 2013), meu pai (e baixista do grupo), Valdemir Guzzo, conta a história da trajetória do grupo Blue Moon aliada a informações sobre a vida no Brasil da época e a atmosfera cultural que rodeava a sociedade de então. Além de tratar do amor pela música que os integrantes do grupo tinham, a obra faz um importante resgate histórico de uma época saudosa, na qual a música era um meio de unir as pessoas e de emocioná-las. O prefácio de Velhos Tempos, Belos Dias foi escrito por Nenê Benvenuti, baixista de Os Incríveis e uma das influências do Blue Moon.

O livro será lançado no início de maio em Veranópolis, com uma reunião dos membros do conjunto.

terça-feira, 2 de abril de 2013

O melhor professor que eu já tive


O texto abaixo foi escrito por David Owen e publicado na edição asiática da revista “Seleções” (Reader’s Digest), em abril de 1991. O artigo foi traduzido para o português e está disponível em vários sites na internet, e eu o publico aqui no blog porque ele expõe um dos objetivos mais importantes da educação, que é desenvolver pessoas pensantes e que cultivem o hábito da dúvida.

O senhor Whitson ensinava ciências para a 6ª série. No primeiro dia de aula ele nos falou sobre uma criatura chamada cattywampus, um animal noturno extinto durante a Era do Gelo. Ele passou para os alunos um crânio enquanto falava. Todos nós fizemos anotações e depois respondemos a um teste sobre a aula.
   Quando recebi a prova corrigida fiquei surpreso. Havia um grande e vermelho X em todas as minhas respostas. Eu havia falhado. Devia haver algum engano! Eu havia escrito exatamente o que o professor Whitson havia dito na aula. Então percebi que todos na classe haviam falhado. O que havia acontecido?
   Muito simples, o professor explicou. Ele havia inventado tudo o que falou sobre o cattywampus. Aquele animal nunca havia existido, ou seja, toda a informação em nossas anotações estava errada. Nós esperávamos crédito por respostas erradas?
   Desnecessário dizer, nós ficamos revoltados. Que tipo de teste era esse e que tipo de professor ele era?
   Nós deveríamos ter descoberto, o senhor Whitson disse. Afinal, equanto ele passava o crânio do cattywampus pela sala (que na verdade era o crânio de um gato), não estava afirmando que não havia sobrado nenhuma evidência do animal? Ele havia descrito sua incrível visão noturna, a cor de sua pelagem e muitos outros fatos que ele não poderia saber. Ele havia dado ao animal um nome ridículo e mesmo assim ninguém havia desconfiado. Os zeros em nossas provas iriam para a avaliação, ele disse. E eles foram.
   O professor Whitson disse que esperava que aprendêssemos uma lição dessa experiência. Professores e livros didáticos não são infalíveis. Na verdade, ninguém é. Ele nos disse para nunca deixar nosso cérebro ficar desatento e a tomar satisfação sempre que pensássemos que ele ou qualquer livro estivessem errados.
   Toda aula com o professor Whitson era uma aventura. Ainda posso lembrar de algumas aulas de ciências do começo até o final. Um dia ele nos disse que seu carro era um organismo vivo. Nós demoramos dois dias para bolar um argumento contrário que ele aceitasse. Ele não nos deixava sossegar até que houvéssemos provado não só que sabíamos o que era um organismo, mas também que tínhamos força para defender a verdade.
   Nós levamos nosso recém-adquirido ceticismo para todas as nossas aulas. Isso causou problemas para os outros professores, que não estavam acostumados a serem desafiados. Nosso professor de história começava a falar sobre algum assunto e de repente se ouvia alguém limpando a garganta com força, e alguém dizia “cattywampus”.
   Se alguém me pedisse uma proposta para solucionar os problemas de nossas escolas, ela seria o professor Whitson. Eu não fiz nenhuma grande descoberta científica, mas ele deu a mim e meus colegas de classe algo tão importante quanto: a coragem de olhar outra pessoa no olho e dizer que ela está errada. Ele também nos mostrou que você pode se divertir nesse processo.
   Nem todo mundo vê valor nisso. Uma vez contei sobre o senhor Whitson a um professor de Ensino Fundamental, que ficou horrorizado. “Ele não devia ter enganado você assim”, disse. Eu o olhei nos olhos e disse que ele estava errado.

terça-feira, 26 de março de 2013

A História das Coisas


Na década de 1960, o biólogo Paul Ehrlich alertava sobre a necessidade de planejar o crescimento da população humana. Segundo ele, o planeta chegaria ao colapso através do que ele denominou de a “bomba populacional”, ou seja, de um número de habitantes cuja manutenção é incompatível com a disponibilidade de recursos de nosso planeta. A previsão de Ehrlich se mostrou equivocada, embora a base de sua argumentação ainda seja válida: o planeta não pode suportar um consumo de recursos maior, e mais veloz, do que a sua capacidade de reposição. E esse é um problema considerado seriamente nos dias atuais.
   Se todos os países do mundo tivessem um padrão de consumo semelhante ao dos Estados Unidos, um planeta Terra não seria o suficiente para manter uma população do tamanho da atual, com cerca de 7 bilhões de pessoas. Mais do que o número de habitantes, a preocupação de ambientalistas e de estudiosos de ecologia tem sido o aumento no padrão de consumo em todo o mundo, especialmente nos chamados países em desenvolvimento, como o Brasil, a Índia e a China.
   O aumento no consumo de um país é consequência, obviamente, do aumento do uso de recursos por cada cidadão. Assim, quando a população passa a comprar mais e a usar mais recursos, além dos sempre citados aspectos econômicos positivos, cria-se uma série de potenciais problemas socioambientais: de onde vem e para aonde vai tudo aquilo que compramos? Ao nos preocuparmos com a origem dos produtos que consumimos, estando pensando nas pessoas que o produziram (e em que condições trabalharam), na matéria-prima que foi utilizada (e como foi extraída) e no processo de produção e distribuição (quanta energia utilizou e de que maneira impactou o ambiente). Em relação ao destino dos produtos que compramos, é importante pensarmos o que será feito com eles depois que não estiverem mais em uso.
   Para conhecer como boa parte daquilo que compramos é produzida, e o que acontece com ela depois do consumo, uma leitura bastante interessante é A História das Coisas: da natureza ao lixo, o que acontece com tudo o que consumimos, de Annie Leonard (Editora Zahar, 2011). Ao dividir a obra em cinco capítulos (Extração, Produção, Distribuição, Consumo e Descarte), a autora faz um panorama geral do processo de produção dos bens de consumo mais comuns em nossa vida cotidiana, como latas de alumínio, camisas de algodão e aparelhos de televisão, e avalia toda a cadeia de impacto ambiental causada por eles.
   A História das Coisas é um livro muito importante por nos deixar a par da cadeia de eventos a qual nos juntamos quando compramos algo. Como afirma a autora, o grande problema de toda essa história está no consumismo, na compra desenfreada e irrefletida de produtos supérfluos ou desnecessários. Se a melhor abordagem para resolução de um problema é ter muitas informações a respeito dele, a leitura de A História das Coisas deve ser um bom começo para todos nós.