quarta-feira, 26 de dezembro de 2012

O jogo da loto em Avesso


No próximo dia 31 acontecerá o sorteio da Mega-Sena da virada, que renderá absurdos 230 milhões de reais ao seu ganhador. Jogos como esse dependem exclusivamente de sorte. Você pode apostar uma vez, jogando apenas os seis números, e ganhar a bolada. Por outro lado, você pode gastar um bom dinheiro apostando quinze números (creio que esse seja o limite para a aposta na Mega-Sena), e não acertar um sequer. As chances de perder, obviamente, são muito maiores do que as de ganhar.
Imagine, então, se a Mega-Sena ocorresse de forma diferente: você paga 1 real quando compra um bilhete, e se perder recebe do governo 2 reais. No entanto, se você tiver o azar suficiente de escolher os números certos, você é quem paga ao governo, e uma quantia enorme, como a de um prêmio de loteria. Situação semelhante é descrita pelos filósofos italianos Roberto Casati e Achille Varzi em Simplicidades Insolúveis: 39 histórias filosóficas (Companhia das Letras, 2005). O trecho abaixo é da história “O jogo da loto na cidade do Avesso”:

ELE – [Desce do ônibus e se dirige ao bar, de onde sai uma senhora com ar satisfeito. Ele a interroga] Desculpe-me, aqui também aceitam apostas na loto?
SENHORA – Claro.
ELE – Então vou me apressar. Sou um verdadeiro aficionado: gosto muito de tentar a sorte. Acho que a senhora me entende...
SENHORA – Eu também jogo, mas sobretudo por necessidade. Agora, por exemplo: precisava comprar selos, e para isso necessitava de três euros.
ELE – Suponho que, se a senhora for uma vencedora de sorte, como me parece que é o caso, deve ter embolsado bem mais de três euros e estar muito satisfeita...
SENHORA – Vencer? Em que sentido? Estou satisfeita em não perder.
ELE – Perder? Em que sentido? Como se pode perder na loteria?
SENHORA – De onde eu venho, os bilhetes são pretos sobre fundo branco, mas noto que o bilhete que está saindo do seu bolso é branco sobre fundo preto. Agora entendo. Vejo que o senhor vem de Direito, onde se compram bilhetes para jogar e às vezes se ganha. Mas aqui estamos em Avesso, onde se recebe dinheiro do Estado para tentar a sorte e às vezes se perde.
ELE – Extraordinário, não sabia da existência desse modo de desafiar o destino. Como funciona?
SENHORA – É muito simples. Basta ir ao banco da MegaLoto e pedir um bilhete do Raspe e Ganhe. Junto com o bilhete vem um euro. O senhor raspa e vê se perdeu.
ELE – E se perdi?
SENHORA – Paga, naturalmente.
ELE – Quanto?
SENHORA – Depende do que está escrito no bilhete.
ELE – Mas... E se estiver escrito que perdi muito?
SENHORA – Se perdeu muito, pagará muito, é óbvio. Parece-me que o máximo é um milhão.
ELE – Um milhão! Mas que loucura! Por que alguém se arriscaria a acabar na miséria só para embolsar um euro?
SENHORA – Não vejo nada de estranho. O jogo aqui funciona assim.

E se nossa loteria funcionasse assim também, você arriscaria?

domingo, 23 de dezembro de 2012

O que espero em 2013


Assim como quase todo mundo, cultivo o pensamento mágico de que o próximo ano trará coisas melhores, não somente para mim, minha família e meus amigos, mas para todas as pessoas. Pensamento mágico é algo que não está amparado por nenhuma evidência ou base racional, é somente fé e torcida. E torço muito para que algumas coisas se modifiquem, para melhor, a partir de 2013.
   Minha maior torcida diz respeito aos rumos da educação no Brasil. Vários posts do Página Virada foram dedicados ao tema, e apresentei aqui alguns argumentos que indicam a falta de cuidado do governo e da sociedade com a situação das escolas, dos professores e dos alunos. Sempre entendi a rotina escolar e universitária como partes indispensáveis de um processo de formação e aprimoramento individual. Descuidar da educação, portanto, é menosprezar a capacidade que temos de nos tornarmos melhores através do estudo e da busca do conhecimento.
   O que temos visto no Brasil, infelizmente, não nos dá indícios de que em 2013 as coisas mudem significativamente. Ao invés de nos apoiarmos no pensamento mágico, temos que agir. Penso que a principal responsável pela baixa qualidade da educação brasileira é a nossa própria sociedade, e há duas razões para isso. A primeira delas é que não valorizamos candidatos que tenham na educação uma base de sua plataforma política. Preferimos aqueles que nos prometem asfalto em frente à nossa casa, o empréstimo de máquinas da prefeitura, ou qualquer outro tipo de auxílio semelhante. A segunda é que boa parte das pessoas não consegue compreender a importância da escola na sociedade. Hoje em dia, é lamentável que alguns pais vejam as escolas como uma espécie de “creches” para adolescentes, um lugar para acomodar aqueles que dão trabalho demais em casa. E os professores, quando não são vistos como “cuidadores”, são os substitutos dos pais, aqueles que ensinam as regras básicas de convivência social, respeito ao próximo e postura. Torço para que tudo isso mude, e rápido.
   A torcida pela educação está ligada, de maneira direta, à torcida para que possamos viver em uma sociedade melhor e mais organizada. Isso significa uma sociedade na qual existam pessoas mais tolerantes, mais gentis, mais cooperativas, mais disciplinadas, mais respeitosas e mais questionadoras. Há algo que podemos fazer imediatamente em relação a isso: examinar o modo como levamos a nossa vida, e fazer um bom esforço para melhorar o que for necessário. Lembro o final de O Livro dos Livros, de A. C. Grayling (ainda não publicado no Brasil, infelizmente), e espero que o espírito das palavras do autor acompanhe nosso agir cotidiano, hoje e sempre:

“Devemos perguntar quais os mandamentos a seguir / Ou faríamos melhor em perguntar, a cada um de nós: / Que tipo de pessoa devo ser? / A primeira pergunta assume que existe uma resposta certa / A segunda assume que há várias respostas certas / Se perguntarmos como responder à segunda pergunta, a resposta apresenta-se com outras perguntas: / O que devemos fazer quando vemos outra pessoa a sofrer, a passar necessidades, com medo ou fome? / Quais são as causas justas, que mundo idealizamos para os nossos filhos, para brincarem na rua com segurança? / Há muitas perguntas do gênero, algumas que dispensam resposta, outras a que não temos como responder / Mas quando todas as respostas a todas as perguntas são condensadas, ninguém ouve menos do que isto: / Ama bem, procura o bem em todas as coisas, não faças mal a ninguém, pensa pela tua própria cabeça, sê responsável, respeita a natureza, dá o teu melhor, informa-te, sê amável, sê corajoso: pelo menos, faz um esforço sincero / E a estas dez obrigações, junta mais uma: meus amigos, que sejamos sempre fiéis a nós mesmos e ao melhor das coisas, para que possamos ser sempre fiéis uns aos outros.

Aproveito a ocasião para agradecer aos amigos que acompanharam o blog em 2012. Que 2013 seja mais um ano de grandes leituras!

terça-feira, 18 de dezembro de 2012

O mal existe? E quem é ele?


Assim como o amor pelos hambúrgueres e pelos carros, a paixão por armas parece ser parte do imaginário do povo americano. A America’s National Rifle Association (NRA), organização cujo objetivo é proteger o direito à livre posse de armas de fogo, tem quase 2 milhões de fãs no Facebook, e um lobby violento no congresso para impedir que o governo americano elabore algum tipo de restrição ao porte de armas nos EUA.
Mais um massacre ocorrido em uma escola americana traz novamente ao centro das discussões a questão do direito de se possuir uma arma de fogo. Esse tipo de evento também levanta debates sobre que tipo de motivação e de condição mental existe em alguém que comete uma atrocidade dessa magnitude. Sobre esse segundo tópico, duas questões interessantes:

1. No jornal inglês The Guardian, a historiadora Lindsey Fitzharris escreve sobre a medicalização do mal. Segundo ela, partimos do pressuposto de que alguém que mata dezenas em um ato como o da escola de Newtown deve ter algum tipo de problema mental. Assumimos, automaticamente, que somente uma pessoa mentalmente doente é capaz de fazer algo parecido, mesmo sem saber se o atirador tinha algum antecedente que indicasse a presença de um distúrbio mental. Nossa aceitação de “normalidade” não comporta comportamentos tão grosseiros. O artigo completo, em inglês, pode ser lido aqui.

2. Em 1972, o psicólogo americano David Rosenhan fez um dos experimentos mais notáveis do século XX a respeito do comportamento humano. Rosenhan escolheu sete pessoas comuns e as instruiu para que fossem a um hospital psiquiátrico e relatassem estarem ouvindo um barulho que os incomodava, como um baque. O oitavo pseudopaciente foi o próprio Rosenham. Todos os falsos pacientes foram internados em hospitais psiquiátricos, e não houve nenhum psiquiatra que percebeu que lidava com pessoas “normais”. Curiosamente, alguns pacientes das instituições em questão identificavam os pacientes de Rosenhan como indivíduos mentalmente sãos, mas os profissionais responsáveis por eles não conseguiam diagnosticar o mesmo. A conclusão de Rosenhan foi assustadora: em muitos casos, não há meios confiáveis de distinguir pessoas normais de doentes mentais. Assim, em um caso como o do atirador americano, qual é a certeza que podemos ter em determinar que se trata de um sujeito com reais distúrbios mentais? O ato cometido por ele indica isso, mas será que pessoas “normais” nunca fariam coisa parecida?
O artigo de Rosenhan, publicado na revista Science, pode ser lido na íntegra (em inglês), aqui. Para ter uma breve ideia de como foi o experimento de Rosenhan, dê uma olhada aqui.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2012

Conversando com Stephen Law


O inglês Stephen Law trabalhava como carteiro até que seu interesse pela filosofia o fez procurar a universidade. Hoje doutor em filosofia e professor universitário, Law é um aclamado escritor de trabalhos que trazem a filosofia ao cotidiano, popularizando a disciplina entre o grande público. Law é o autor daquele que considero o mais interessante livro de introdução à filosofia disponível no Brasil, o Guia Ilustrado Zahar de Filosofia (Jorge Zahar, 2008). Outra obra de destaque do autor, e que também pode ser encontrada nas livrarias brasileiras, é Os Arquivos Filosóficos (Martins Fontes, 2010), um livro voltado para o público jovem – mas ótimo para qualquer pessoa que goste de filosofia e não tenha muita intimidade com seus temas – que trata daquilo que Law chama de “grandes questões”, como a ética envolvida na nossa alimentação, a distinção entre o que é real e o que não é, e a existência de Deus, entre outros.
   Entrei em contato com o autor para saber suas opiniões a respeito dos livros e de leitura. Law aceitou o convite do blog, e suas instigantes reflexões se encontram abaixo.

Página Virada: O que você está lendo agora?
Stephen Law: Não leio um trabalho de ficção há anos. Eu tendo a ler livros de filosofia. Atualmente, estou lendo o último livro de Richard Carrier, Proving History: Bayes Theorem and the quest for the historical Jesus (obs: obra não publicada no Brasil).

PV: Que livros o influenciaram?
SL: Entre os livros que não são de filosofia, eu diria que O Terceiro Tira, de Flann O’Brien (L&PM, 2006) está no topo da lista. É uma imagem surreal e assustadora do inferno, com muitas reviravoltas estranhas no enredo. Todos os nomes dos personagens de meu livro The Phylosophy Gym (obs: obra não publicada no Brasil) foram tiradas desse romance.

PV: Por que você considera que é importante ler?
SL: Você assume que eu penso que é importante ler. Eu realmente penso que a leitura de obras de ficção é um tanto superestimada, como é a própria ficção. Ela pode ser divertida, sem dúvida. Mas autores de ficção são geralmente louvados como possuidores de grandes insights sobre a condição humana, sobre filosofia, etc. Em minha opinião, muitos deles têm pouco mais do que pose e aparência, e são vazios. O que não significa dizer que não possamos encontrar jóias entre eles, como Philip Pullman ou George Orwell. Mas a habilidade para contar uma boa história não se traduz automaticamente em habilidade filosófica ou insight.
   Frequentemente se diz que nós aprendemos muito com os romances. Mas o que aprendemos, exatamente? Que tipo de “verdade” os romances têm? Entendo que se eu ler uma história sobre um serial killer, sobre como ele se tornou um assassino, de um modo que eu possa ver que eu também poderia terminar como ele, então eu teria aprendido algo valioso. Eu também entendo que poderia ler sobre alguma preocupação que alguém tem em uma história, com a qual eu compartilhe, mas pensava ser exclusivamente minha, então eu percebo que não estou sozinho em ter tais pensamentos e sentimentos. Também entendo que eu possa ter um sentimento que considere difícil de articular, e em um romance eu encontro a perfeita expressão dele. “Sim”, eu poderia pensar, “é assim que eu me sinto”. Romances podem também nos provocar para pensar sobre coisas que de outra maneira não teríamos considerado. Essas são algumas maneiras pelas quais eu poderia aprender algo, ganhar algum insight.
   Por outro lado, romances são histórias. E histórias podem ser propaganda ideológica e política, mesmo que propaganda inconsciente. A literatura pode ser usada para contar mentiras sobre a condição humana. Um escritor habilidoso pode, ao pressionar nossos botões emocionais, nos fazer sentir simpatia por uma causa que nós deveríamos rejeitar, ou fazer algo errado parecer certo ou normal, por exemplo.
   A literatura é uma boa história com um começo, um meio e um fim, um personagem forte que se desenvolve, e assim por diante. A vida real raramente tem essas características. As pessoas raramente mudam, e quando o fazem raramente mudam da maneira que uma boa história requer. As explicações reais sobre o porquê as pessoas fazem as coisas raramente são tão dramaticamente satisfatórias e organizadas como aquelas encontradas para personagens fictícios. Quando as pessoas escrevem biografias ou relatos dramatizados de eventos da vida real, a vida real tem que ser fortemente editada e polida nas convenções da literatura para que nós possamos ter uma boa história. Ou então o autor deve procurar muito por episódios incomuns ou vidas que realmente preencham os requisitos da boa literatura.
   Assim, a literatura não é, de muitas maneiras, profundamente enganosa, nos dando a ilusão de que a vida real tem uma estrutura narrativa clara, um enredo, uma moral, é dirigida por princípios psicológicos, etc..., que são aspectos realmente raros, se é que podem estar presentes, em uma vida real?
   A “psicologia” que ela apresenta não é frequentemente mítica, ao invés de verdadeira, refletindo o que um indivíduo falível, o autor, pensa sobre o que faz as pessoas tocarem suas vidas, ao invés do que verdadeiramente as faz continuar suas vidas?
   De fato, nós somos eternamente apresentados ao mesmo estoque de enredos e personagens típicos, que funcionam como símbolos culturais para nós: “Oh, é uma história sobre uma busca, e X é um herói com defeitos, e ele aprende esse tipo de lição à medida que ele avança em sua busca...” Mesmo quando uma história se desvia desses tipos, isso não acontece precisamente por ela deliberadamente desprezar eles – por ela se revelar como um outro tipo de história, ao invés daquilo que ela inicialmente aparentava ser (o enredo com uma “virada”)?
   Outras pessoas se dirigem a figuras literárias em busca de profundidade. Fico frequentemente desapontado por aquilo que elas têm a dizer. Muito disso pode ser considerado como pseudo-profundidade. Veja o link:  http://stephenlaw.blogspot.co.uk/2011/06/pseudo-profundity-from-believing.html

PV: É possível fazer com que as pessoas leiam mais? Como se pode fazer isso?
SL: Como eu disse, a leitura de ficção pode ser uma atividade superestimada. Certamente, ler ficção é algo superestimado de muitas maneiras (o que não significa negar que isso possa ser maravilhoso – mas não vamos nos deixar levar e supor que a boa ficção seja mais do que ela realmente é).

PV: Você é um filósofo acadêmico que escreve livros para o público geral. Qual é o papel da filosofia na vida de uma pessoa comum?
SL: Nós todos somos filósofos. Nós só não percebemos isso. Espero que meus livros pelo menos façam as pessoas perceberem o quanto a filosofia está impregnada em seu sistema de crença. E parte disso é má filosofia.