Existem
várias respostas a perguntas referentes ao sentido de termos escolas e de
educarmos formalmente alguém. Eu tendo a concordar com autores como John Dewey
e, principalmente, Matthew Lipman, que defendiam que o objetivo educacional
mais importante é nos fazer pensar melhor. Em A filosofia vai à escola (Summus, 1990), Lipman afirma que “nenhuma acusação à educação é mais séria do
que a acusação de que ela favorece atitudes acríticas em vez de críticas” –
o termo “crítica”, aqui, não deve ser entendido em seu sentido popularmente
mais conhecido, como uma apreciação desfavorável ou uma constante busca de
erros e de defeitos em alguma ideia. O que Lipman aponta é que escola deveria
favorecer atitudes reflexivas, ponderadas, que estejam bem fundamentadas em
razões, ou seja, razoáveis (esse é um termo muito usado pelo autor em seus escritos
– um sujeito razoável, afirma Lipman, é alguém que faz uso constante da razão).
A ideia de que a escola deve nos ajudar
a pensar melhor não indica que o bom pensamento é um fim em si mesmo. Lipman
argumentava que nós deveríamos nos preocupar em pensar melhor para melhorar os
nossos julgamentos a respeito das mais variadas ideias às quais somos expostos.
O refinamento de nossos julgamentos, conclui o autor, é o caminho mais
confiável para termos uma vida melhor (individual e socialmente), considerando
que nós costumeiramente agimos de acordo com aquilo que pensamos. Em O pensar na educação (Vozes, 2008),
Lipman escreve:
“O objetivo do processo educativo é o de
ajudar-nos a formar melhores julgamentos a fim de que possamos modificar nossas
vidas de maneira mais criteriosa. Julgamentos não são fins em si mesmos. Nós
não experienciamos obras de arte a fim de julgá-las; julgamos estas a fim de
sermos capazes de ter experiências estéticas enriquecedoras. Fazer julgamentos
morais não é um fim em si mesmo; é um meio de melhorar a qualidade de vida.”
Pensar bem para formar melhores
julgamentos parece ser algo razoável. E, quando se fala em “bom pensamento” nos
termos descritos por Lipman – e resumidos nos parágrafos acima –, encontramos na
literatura educacional a expressão “pensamento crítico” como seu correlato. Segundo o filósofo norte-americano Harvey Siegel, pensamento crítico é uma expressão que
deve ser entendida normativamente como um conjunto de habilidades cognitivas e
disposições comportamentais desejáveis para que alguém possa pensar melhor.
Entre essas habilidades, por exemplo, estão a capacidade de entender e avaliar
argumentos e a de pensar a respeito de seu próprio pensar (metacognição). Entre
as disposições, a mais destacada é o chamado “espírito crítico”, ou seja, a
inclinação que um sujeito tem a sempre procurar pensar de maneira aprofundada a
respeito de algum tema, buscando razões e evidências que orientem o seu
pensamento. A respeito do pensamento crítico, Siegel afirma:
“Por causa dessa conexão entre razões e
princípios, o pensamento crítico é um pensamento baseado em princípios: devido
ao fato que os princípios envolvem consistência, o pensamento crítico é
imparcial, consistente e não-arbitrário, e o pensador crítico tanto pensa
quanto age de acordo com, e valoriza, a consistência, a justiça e a imparcialidade
do julgamento e da ação. O julgamento crítico, baseado em princípios, em sua
rejeição da arbitrariedade, inconsistência e parcialidade, pressupõe o
reconhecimento da força dos padrões, considerando-os como universais e
objetivos, de acordo com os quais os julgamentos devem ser feitos. Em primeira
instância, tais padrões envolvem critérios pelos quais os julgamentos podem ser
feitos com relação à aceitabilidade de várias crenças, afirmações e ações – ou
seja, eles envolvem critérios que permitem a avaliação da robustez e da força
das razões que podem ser oferecidas em suporte a crenças, afirmações e ações
alternativas”
Além de ressaltar a importância de
critérios para se pensar criticamente, Siegel apresenta um aspecto que eu
considero o mais relevante, e difícil de ser atingido, para se pensar
criticamente e fazer bons julgamentos: a imparcialidade. Todo ser humano é
carregado de ideias, posições ideológicas, visões de mundo, etc. Além dessa
carga de informação preconcebida, temos um aparato psicológico bastante
eficiente em solidificar nossas crenças e elaborar mecanismos para defendê-las.
Por isso é difícil pensar de modo imparcial, considerando somente as razões ou
evidências às quais temos acesso, sem incutir nelas qualquer preferência
pessoal.
Consideremos o caso do aquecimento
global antropogênico (AGA, também denominado “mudança climática antropogênica”),
a ideia de que a atividade humana tem impactado o clima de nosso planeta. Nos
Estados Unidos, é comum que um cidadão alinhado ao partido democrata aceite a ideia do AGA, enquanto outro, alinhado ao partido republicano, a rejeite.
No entanto, provavelmente a aceitação ou rejeição da ideia do AGA tenha em seu
âmago um forte viés ideológico: se o mundo está ficando cada vez mais quente, e
se isso se dá devido ao aumento da concentração de gases estufa na atmosfera
que, por sua vez, são em sua maioria resultado de atividade industrial, então é
sensato que ocorram interferências nos sistemas de produção industrial,
especialmente nos países que mais poluem, um cenário visto com maus olhos por
um republicano, mas compatível com o pensamento democrata; por outro lado, se o
AGA não existe, isso significa que não há nenhuma razão em restringir ou modificar
qualquer aspecto da produção industrial, e assim a economia dos grandes países
industrializados está a salvo de potenciais danos, em um cenário que agrada aos
republicanos muito mais do que aos democratas. Assim, o AGA – que deveria estar
somente no âmbito da ciência, pelo menos no que se refere à sua ocorrência
(existem evidências para ele? O que diz o consenso científico a respeito do
tema?) – acaba se tornando uma discussão carregada de ideologia, e guiada por
ela.
Casos como o do aquecimento global
antropogênico e tantos outros (evolução X criacionismo, conspiracionistas que
fazem campanhas contra a vacinação, negadores do holocausto, etc.) não nos
mostram que é impossível ser imparcial quando ponderamos a respeito de
determinada questão. Afinal, depois de toda a discussão que esses assuntos
suscitaram, é possível saber para onde a preponderância das evidências aponta,
e assim entender quais são as melhores ideias em cada caso (o AGA tem acontecido; a teoria da evolução biológica abrange o que melhor sabemos a
respeito de como a vida evoluiu em nosso planeta; as vacinas funcionam, salvam
vidas, e devem ser aplicadas conforme tradicionalmente se recomenda; o
holocausto aconteceu, e resultou em milhões de pessoas mortas pelos nazistas).
Aceitar a preponderância das evidências, mesmo que elas entrem em conflito com
nossa visão de mundo, isso é ser imparcial no sentido apresentado por Siegel. A
parcialidade, nesse caso, deve estar atrelada às razões e às evidências. "Se existirem boas razões para se aceitar 'A', mas minha visão de mundo está de acordo com 'B', o que fazer?" Se fortes razões existirem, um sujeito imparcial, fazendo um bom
julgamento, deve considerar seriamente abandonar a ideia B em favor de A.
Reli Lipman e Siegel há pouco tempo e,
durante a leitura, refleti sobre a maneira pela qual uma série de debates é
feita no Brasil. É muito comum encontrarmos chavões no lugar de ideias.
Lugares-comuns abundam por aqui, e uma consulta aos comentários postados por
leitores em páginas de notícias, ou em redes sociais, demonstra que as pessoas
parecem mais empenhadas em atestar que abraçam determinada causa ou ideia do
que propriamente a entendem. Se você solicitar a alguém que explique porque ele
imagina que o Brasil está sob ameaça de golpe comunista (como algumas pessoas
aparentemente propensas a ideias conspiracionisitas acreditam), dificilmente
você receberá um conjunto de boas razões para aceitar essa ideia estranha.
Igualmente, é provável que faltem bons argumentos para aqueles que costumam brincar
com palavras ou expressões politicamente corretas, mas que não conseguem
sustentar as suas ideias depois de uma ou duas perguntas pertinentes.
Criamos uma cultura na qual uma virtude
inquestionável é agarrar-se a alguma ideia e defendê-la a qualquer custo de
exame externo – uma cultura que se opõe à defendida por autores como Matthew
Lipman, por ser incompatível com o bom pensar. Um sujeito que passa a vida
inteira repetindo bordões, mesmo sem ter pensado criticamente a respeito deles,
é considerado por muitos como um bom exemplo intelectual. A dúvida, ou mesmo o
abandono da crença em determinada ideia, não são virtudes bem cotadas entre nós.
O filósofo americano Peter Boghossian, em seu corajoso A manual for creating atheists (Pitchstone Publishing, 2013), escreve a respeito dessa questão com muita propriedade:
“Enquanto sociedade, temos considerado como
virtude a importância de se acreditar em alguma coisa e de defender nossas
crenças. A frase comum ‘defenda aquilo que você acredita’ tem sido tomada como
algo positivo – uma virtude que deveria ser aspirada por todos, e uma
deficiência moral se não for seguida.
Se
alguém deveria defender ou não aquilo em que acredita, isso depende
exclusivamente em 'o que' esse sujeito acredita, e porque ele acredita nisso.
Ter uma firme crença não é uma virtude. Nenhuma inferência moral confiável pode
ser feita a respeito de um indivíduo baseado na força de sua convicção.”
Penso que nós todos deveríamos nos
esforçar sinceramente para abrir um espaço importante para o pensamento imparcial,
para as boas razões e evidências em nossa maneira de interagir com o mundo e
sustentar nossos juízos a respeito de qualquer assunto. Pensar bem não implica
defendermos a qualquer custo aquilo em que acreditamos, mas demanda honestidade
intelectual suficiente para reavaliarmos nossas posições e ideias com base nas
melhores evidências disponíveis, deixando um espaço considerável para a
possibilidade de estarmos errados. E, no que diz respeito à possibilidade de
alguém estar errado, a honestidade intelectual deveria fazer com que todos nós constantemente
nos perguntássemos: que tipo de evidência ou razão eu preciso para concluir que
determinada ideia – que eu aceito há algum tempo – não é tão boa quanto eu pensava
e que, por isso, eu preciso revisá-la? Se existir alguma evidência ou razão que
poderia confrontar nossas crenças, e nós estamos dispostos a analisá-la, então
estamos desenvolvendo uma atitude que pode nos afastar de dogmatismos e nos
conduzir a um pensar melhor.
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