Nos
anos 1950, uma dona de casa americana chamada Dorothy Martin ganhou notoriedade
ao afirmar que o mundo acabaria através de uma grande enchente antes do
amanhecer do dia 21 de dezembro de 1954. A teoria de Martin, por si só
esquisita, ganhou uma conotação ainda mais bizarra quando a mulher revelou a
fonte da informação: extraterrestres de um planeta denominado Clarion haviam lhe
avisado a respeito do fim do mundo. Os alienígenas foram mais longe, e comunicaram
a Dorothy que ela e mais um grupo de pessoas que deveria se juntar a ela (os
“verdadeiros crentes”) seriam levados por uma nave extraterrestre e salvos do
apocalipse. Muitas pessoas abandonaram seus empregos e suas famílias para se
juntar à Dorothy, e a espera pelo fim do mundo – e pela vinda do disco voador –
havia começado.
Leon Festinger, um jovem psicólogo
cognitivo, ficou bastante interessado pelo grupo de Martin (ele havia lido
sobre o caso em um jornal). Festinger não acreditava que o mundo iria acabar,
mas sabia que aquela era uma oportunidade muito boa para se observar e coletar informações
a respeito de como as pessoas justificam e adaptam as suas crenças aos fatos.
Assim, Festinger estaria atento às justificativas que seriam apresentadas pelos
líderes do grupo, especialmente Dorothy Martin, sobre a razão de o mundo não
ter acabado como se previa, e nem os extraterrestres aparecido. Festinger se
infiltrou no grupo e passou a acompanhar os momentos derradeiros. Uma breve
descrição daquilo que Festinger observou nos dias anteriores e posteriores ao
esperado apocalipse pode ser lida na Wikipédia:
-
antes de 20 de dezembro de 1954: o grupo evita publicidade. O grupo desenvolve
um sistema de crenças – obtido do planeta Clarion através de psicografia – para
explicar os detalhes do cataclismo, as razões para sua ocorrência, e a maneira
pela qual o grupo poderia escapar do desastre
-
20 de dezembro: o grupo espera que um visitante de outro planeta apareça e os
acompanhe até uma espaçonave. Para isso, os membros do grupo precisam se
desfazer de quaisquer objetos metálicos. As pessoas descartam objetos que
possuem peças metálicas e aguardam os alienígenas
-
00h05min de 21 de dezembro: nenhum extraterrestre aparece. Alguém nota que um
relógio marca 23h55min, e então o grupo concorda que ainda não é meia-noite
-
00h10min: todos os relógios já marcam meia noite, e ainda nenhum visitante
apareceu. O grupo espera em silêncio, pois o cataclismo vai ocorrer em menos de
sete horas
-
4h: o grupo está sentado e em completo silêncio. Algumas tentativas de
encontrar explicações para o não aparecimento dos alienígenas falham. Martin
começa a chorar
-
4h45min: outra mensagem é psicografada por Dorothy Martin. Ela diz que o Deus
da Terra decidiu livrar o planeta da destruição. O cataclismo foi cancelado. A
explicação: “O pequeno grupo de pessoas, sentado a noite inteira, tinha
espalhado tanta luz que Deus decidiu salvar o mundo da destruição”
-
tarde de 21 de dezembro: contrariamente ao que ocorria antes, o grupo chama a
imprensa. Sua mensagem deve ser espalhada pelo mundo inteiro.
O final do mundo não ocorreu, como
alardeava o grupo de Dorothy Martin. Ao invés de um pedido de desculpas pela
besteira ou, pelo menos, de um simples “eu estava enganada” ou “me iludi, isso
pode acontecer com qualquer um”, Martin ajustou a sua crença com o inescapável
fato de que o mundo continuava como antes. Agora, os aliens haviam avisado que
foi a boa energia do grupo da dona-de-casa que tinha salvado o mundo. Se não
fosse essa a justificativa usada, certamente outras seriam inventadas.
Em 1956, Festinger publicou When Profecy Fails, obra que trata da
história do grupo de Martin – o autor usou pseudônimos para os personagens:
Dorothy Martin virou Marian Keech –, e cunhou o termo que representaria um dos
fenômenos mais estudados na psicologia social da segunda metade do século XX: a
dissonância cognitiva.
Experimentamos a dissonância cognitiva
quando tentamos sustentar ideias, crenças ou opiniões incompatíveis entre si,
ou que não são compatíveis com informações e evidências que recebemos de outras
fontes. Assim, um sujeito que joga lixo no chão e se justifica dizendo que os
responsáveis pela poluição são as grandes empresas está amarrado pela
dissonância cognitiva. Você comprou um aparelho de celular novo, pagou muito
caro por ele, mas ele não é tão bom quanto você imaginava que fosse. Aí, um
amigo lhe pede sobre a qualidade do celular. Você provavelmente vai elogiar o
aparelho, minimizar os defeitos, ou mesmo não reconhecê-los.
A dissonância cognitiva é utilizada por
qualquer pessoa nas mais diversas situações do cotidiano. Esse é um recurso
cognitivo absolutamente normal, e sem ele nós provavelmente enlouqueceríamos.
No entanto, a dissonância cognitiva pode ser perigosa se nos mantiver em uma
situação parecida com a dos seguidores do grupo de Dorothy Martin ou, em um
exemplo mais extremo, se nos fizer embarcar em uma viagem sem volta junto ao
líder de uma seita, como as mais de 900 pessoas que seguiram Jim Jones à Guiana
na década de 1970.
O filósofo inglês Stephen Law afirmaria
que as pessoas que seguiram líderes como Martin e Jones caíram em “buracos
negros intelectuais”. Buracos negros intelectuais são sistemas de crença nos
quais seus seguidores ficam presos, mesmo que não percebam. Quando confrontados
com a realidade (o mundo não acabou!), essas pessoas procuram maneiras de
enfrentar os novos fatos sem que seja necessário desfazerem-se de suas crenças
anteriores. Uma vez dentro de um buraco intelectual é difícil sair dele, porque
a influência de mecanismos psicológicos como a dissonância cognitiva é muito
forte.
Apesar de se aplicarem a determinados
cultos religiosos, os buracos negros intelectuais não se restringem a eles.
Recentemente, o Ministério Público Federal denunciou algumas empresas por
manterem um suposto esquema de pirâmide financeira, não sustentável a longo
prazo porque a sua manutenção implica na entrada do dinheiro de novos
investidores. Quem, no Facebook, visita a página de qualquer uma das empresas
envolvidas no suposto esquema vai encontrar uma série de comentários de seus
investidores. É raro encontrar alguém que duvide das empresas. Assim, teorias
da conspiração envolvendo políticos, ministros, empresas de telefonia,
procuradores de justiça e advogados parecem muito mais plausíveis do que
simplesmente admitir que o sujeito foi envolvido em um golpe.
Stephen Law trata de algumas armadilhas
de pensamento em Believing Bullshit: how
not to get sucked into an intellectual black hole (Prometheus Books, 2011,
sem tradução para o português). Um livro recentemente lançado no Brasil, A Arte de Pensar Claramente: como evitar as
armadilhas do pensamento e tomar decisões de forma mais eficaz (Objetiva,
2013), de Rolf Dobelli, traz uma lista de vieses e tendências de pensamento que
muitas vezes nos põem em situações complicadas. A dissonância cognitiva é um
dos temas tratados nessa obra. Outra boa leitura sobre a dissonância cognitiva
e outros vieses psicológicos é Ideias
Próprias: como o cérebro distorce a realidade e o engana (Difel, 2008), de
Cordelia Fine.
Nenhum comentário:
Postar um comentário