terça-feira, 20 de agosto de 2013

O mundo não acabou, mas fomos apresentados à dissonância cognitiva

Nos anos 1950, uma dona de casa americana chamada Dorothy Martin ganhou notoriedade ao afirmar que o mundo acabaria através de uma grande enchente antes do amanhecer do dia 21 de dezembro de 1954. A teoria de Martin, por si só esquisita, ganhou uma conotação ainda mais bizarra quando a mulher revelou a fonte da informação: extraterrestres de um planeta denominado Clarion haviam lhe avisado a respeito do fim do mundo. Os alienígenas foram mais longe, e comunicaram a Dorothy que ela e mais um grupo de pessoas que deveria se juntar a ela (os “verdadeiros crentes”) seriam levados por uma nave extraterrestre e salvos do apocalipse. Muitas pessoas abandonaram seus empregos e suas famílias para se juntar à Dorothy, e a espera pelo fim do mundo – e pela vinda do disco voador – havia começado.
        Leon Festinger, um jovem psicólogo cognitivo, ficou bastante interessado pelo grupo de Martin (ele havia lido sobre o caso em um jornal). Festinger não acreditava que o mundo iria acabar, mas sabia que aquela era uma oportunidade muito boa para se observar e coletar informações a respeito de como as pessoas justificam e adaptam as suas crenças aos fatos. Assim, Festinger estaria atento às justificativas que seriam apresentadas pelos líderes do grupo, especialmente Dorothy Martin, sobre a razão de o mundo não ter acabado como se previa, e nem os extraterrestres aparecido. Festinger se infiltrou no grupo e passou a acompanhar os momentos derradeiros. Uma breve descrição daquilo que Festinger observou nos dias anteriores e posteriores ao esperado apocalipse pode ser lida na Wikipédia:
- antes de 20 de dezembro de 1954: o grupo evita publicidade. O grupo desenvolve um sistema de crenças – obtido do planeta Clarion através de psicografia – para explicar os detalhes do cataclismo, as razões para sua ocorrência, e a maneira pela qual o grupo poderia escapar do desastre
- 20 de dezembro: o grupo espera que um visitante de outro planeta apareça e os acompanhe até uma espaçonave. Para isso, os membros do grupo precisam se desfazer de quaisquer objetos metálicos. As pessoas descartam objetos que possuem peças metálicas e aguardam os alienígenas
- 00h05min de 21 de dezembro: nenhum extraterrestre aparece. Alguém nota que um relógio marca 23h55min, e então o grupo concorda que ainda não é meia-noite
- 00h10min: todos os relógios já marcam meia noite, e ainda nenhum visitante apareceu. O grupo espera em silêncio, pois o cataclismo vai ocorrer em menos de sete horas
- 4h: o grupo está sentado e em completo silêncio. Algumas tentativas de encontrar explicações para o não aparecimento dos alienígenas falham. Martin começa a chorar
- 4h45min: outra mensagem é psicografada por Dorothy Martin. Ela diz que o Deus da Terra decidiu livrar o planeta da destruição. O cataclismo foi cancelado. A explicação: “O pequeno grupo de pessoas, sentado a noite inteira, tinha espalhado tanta luz que Deus decidiu salvar o mundo da destruição”
- tarde de 21 de dezembro: contrariamente ao que ocorria antes, o grupo chama a imprensa. Sua mensagem deve ser espalhada pelo mundo inteiro.
        O final do mundo não ocorreu, como alardeava o grupo de Dorothy Martin. Ao invés de um pedido de desculpas pela besteira ou, pelo menos, de um simples “eu estava enganada” ou “me iludi, isso pode acontecer com qualquer um”, Martin ajustou a sua crença com o inescapável fato de que o mundo continuava como antes. Agora, os aliens haviam avisado que foi a boa energia do grupo da dona-de-casa que tinha salvado o mundo. Se não fosse essa a justificativa usada, certamente outras seriam inventadas.
        Em 1956, Festinger publicou When Profecy Fails, obra que trata da história do grupo de Martin – o autor usou pseudônimos para os personagens: Dorothy Martin virou Marian Keech –, e cunhou o termo que representaria um dos fenômenos mais estudados na psicologia social da segunda metade do século XX: a dissonância cognitiva.
        Experimentamos a dissonância cognitiva quando tentamos sustentar ideias, crenças ou opiniões incompatíveis entre si, ou que não são compatíveis com informações e evidências que recebemos de outras fontes. Assim, um sujeito que joga lixo no chão e se justifica dizendo que os responsáveis pela poluição são as grandes empresas está amarrado pela dissonância cognitiva. Você comprou um aparelho de celular novo, pagou muito caro por ele, mas ele não é tão bom quanto você imaginava que fosse. Aí, um amigo lhe pede sobre a qualidade do celular. Você provavelmente vai elogiar o aparelho, minimizar os defeitos, ou mesmo não reconhecê-los.
        A dissonância cognitiva é utilizada por qualquer pessoa nas mais diversas situações do cotidiano. Esse é um recurso cognitivo absolutamente normal, e sem ele nós provavelmente enlouqueceríamos. No entanto, a dissonância cognitiva pode ser perigosa se nos mantiver em uma situação parecida com a dos seguidores do grupo de Dorothy Martin ou, em um exemplo mais extremo, se nos fizer embarcar em uma viagem sem volta junto ao líder de uma seita, como as mais de 900 pessoas que seguiram Jim Jones à Guiana na década de 1970.
        O filósofo inglês Stephen Law afirmaria que as pessoas que seguiram líderes como Martin e Jones caíram em “buracos negros intelectuais”. Buracos negros intelectuais são sistemas de crença nos quais seus seguidores ficam presos, mesmo que não percebam. Quando confrontados com a realidade (o mundo não acabou!), essas pessoas procuram maneiras de enfrentar os novos fatos sem que seja necessário desfazerem-se de suas crenças anteriores. Uma vez dentro de um buraco intelectual é difícil sair dele, porque a influência de mecanismos psicológicos como a dissonância cognitiva é muito forte.
        Apesar de se aplicarem a determinados cultos religiosos, os buracos negros intelectuais não se restringem a eles. Recentemente, o Ministério Público Federal denunciou algumas empresas por manterem um suposto esquema de pirâmide financeira, não sustentável a longo prazo porque a sua manutenção implica na entrada do dinheiro de novos investidores. Quem, no Facebook, visita a página de qualquer uma das empresas envolvidas no suposto esquema vai encontrar uma série de comentários de seus investidores. É raro encontrar alguém que duvide das empresas. Assim, teorias da conspiração envolvendo políticos, ministros, empresas de telefonia, procuradores de justiça e advogados parecem muito mais plausíveis do que simplesmente admitir que o sujeito foi envolvido em um golpe.



        Stephen Law trata de algumas armadilhas de pensamento em Believing Bullshit: how not to get sucked into an intellectual black hole (Prometheus Books, 2011, sem tradução para o português). Um livro recentemente lançado no Brasil, A Arte de Pensar Claramente: como evitar as armadilhas do pensamento e tomar decisões de forma mais eficaz (Objetiva, 2013), de Rolf Dobelli, traz uma lista de vieses e tendências de pensamento que muitas vezes nos põem em situações complicadas. A dissonância cognitiva é um dos temas tratados nessa obra. Outra boa leitura sobre a dissonância cognitiva e outros vieses psicológicos é Ideias Próprias: como o cérebro distorce a realidade e o engana (Difel, 2008), de Cordelia Fine.


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