Por Luciano Mallmann*
Em uma conferência, Jorge Luis Borges afirma que a poesia é anterior ao livro, sendo este apenas uma ocasião para que ela se manifeste. Acredito que isso possa ser aplicado sem perda alguma à literatura como um todo, e dessa equação resultamos nós e os livros. Dessa maneira, o que temos é a literatura, e uma obra específica é apenas parte dela. Sendo assim, a expressão “O livro de minha vida”, no singular, me traz uma dificuldade: muito me perguntei como seria partir em pedaços algo que, mesmo surgido por meio de um encadeamento, soma apenas uma coisa, ou seja, os livros que lemos. Contudo, e aos meus olhos seria talvez esse o espírito dessa série, existem livros que, pelas circunstâncias em que nos encontrávamos ao lê-los, transcenderam em muito o seu papel, que em si já não é pequeno, de nos fazer enxergar o mundo sob outro viés e, por meio desse modo de ver, nos levar a uma evolução. Creio, a partir disso, serem esses os livros de nossas vidas: obras que refletem em detalhes determinados momentos que vivenciamos, conferindo-lhes um sentido que, por mais que nos esforçássemos, só logramos compreender por intermédio de uma leitura que apenas o acaso determina se ocorrerá ou não. Desse modo, a leitura de certos livros não pode ser avaliada fora do contexto em que os lemos pela primeira vez, pois, por seu caráter universal, suas histórias se tornaram elas próprias matéria-prima de nossa existência, ou, em outras palavras, parte de nossa biografia. Talvez nisso resida uma das maiores riquezas dos grandes livros: a capacidade, mesmo tendo sido escritos em alguns casos há séculos, de se mesclarem perfeitamente, trazendo sua luz, à realidade que nos cerca. Para este texto, escolhi dois exemplos que, antes de consistirem duas obras, significam também duas maneiras de ler.
É muito famosa a frase de John Donne segundo a qual nenhum homem dorme na carreta que o leva da prisão ao patíbulo; apesar disso, todos dormimos desde o nascimento até a sepultura, ou não estamos inteiramente despertos. Essa seria, segundo o poeta inglês, a função da alta literatura: despertar o homem que é conduzido ao patíbulo. Aos dezesseis anos, experimentei toda a verdade contida nessa afirmação. Sob vários aspectos, foi um período difícil, repleto de questionamentos, como costuma ser para muitos nessa faixa etária. Talvez pelo fato de ter tido uma rígida criação católica, as dificuldades mais comuns pareciam tomar a forma de uma punição sem causa. Todavia, aqueles dias teriam sido ainda mais tortuosos se um determinado escritor não houvesse surgido, como que por acaso, com a finalidade de, por assim dizer, explicar com rara exatidão o funcionamento da vida: Franz Kafka. O nome da obra: O processo. O enredo é bastante conhecido: nesse romance, deparamo-nos com Joseph K., um bancário que, por razões que permanecem desconhecidas tanto para o personagem como para o leitor, é detido numa manhã por dois policiais. É difícil não ceder à tentação de interpretar essa obra, examinando-a sob a ótica da biografia do autor, sua origem judaica, entre diversos outros aspectos. Esses modos de interpretação são sem dúvida muito válidos, mas sempre manifestei minha preferência por privilegiar, na visão de certas obras, simplesmente aquilo que elas se revelam capazes de despertar em nós; no caso em questão, o maior assombro. Diante da situação do personagem, somos levados a pensar que houve algum erro, uma falha humana, mas somos informados por Tintorelli, o pintor, que “quando acusa alguém, a Corte não pode ser arredada dessa convicção”. Ou seja: não há engano algum. Pusemo-nos então a imaginar que espécie de transgressão Joseph teria cometido, o que, por permanecer na esfera da subjetividade, também se revela inútil: nada poderia ser mais contrário a Kafka. Temos de contentar-nos então com os dados que o narrador nos fornece e questionar-nos a respeito da natureza da Justiça que move o processo contra Joseph K., na qual nos surpreende sobretudo a inacessibilidade dos magistrados, distância também presente em O castelo. Creio mesmo que, se nos puséssemos a imaginar a vida pregressa do personagem, não seríamos capazes de encontrar nada além de uma existência irrepreensível em todos os sentidos. A despeito disso, somos informados, através de um personagem, que “jamais se pode duvidar da culpa”. Nesse momento, tomamos conhecimento de que a transgressão de Joseph K. diz respeito também a nós, embora, para entendê-la, não possamos fazer mais que aventar hipóteses: existiria porventura culpa por se estar vivo, ou por viver neste mundo? Ou seria simplesmente algo como uma completa falta de lógica desse mesmo mundo em que vivemos? Seja como for, essas respostas repercutem em nossas mentes ao longo dos anos que se sucedem à leitura sem que tenhamos jamais noção, mais especificamente, de respostas plausíveis. Voltando à obra: por mais que o personagem seja realmente culpado, do que duvidamos sempre, estamos certos de que, no máximo, o veredicto lhe reservará não mais que alguns anos de prisão. Pensar desse modo, porém, só é possível para quem não conhece Franz Kafka, o que era o meu caso. Não sei se é nisso que reside a força da obra e, principalmente, do final, daquele final: a morte violenta, “como um cachorro”, nas mãos de dois executores. E a observação do narrador parece explicitar ainda mais a suposta infâmia do personagem: “era como se a vergonha fosse sobrevivê-lo”. Tendo em nossas mãos a página aberta nessa cena, o que nos resta é a mais completa perplexidade. Creio que seja por momentos semelhantes que Fabrício Carpinejar afirmou que a literatura nasce do silêncio e provoca silêncio, do que não há como discordar. E O processo, em qualquer momento em que seja lido, será sempre um ritual de iniciação marcado sobretudo por um silêncio de estupefação.