Não
há qualquer novidade em lermos objeções quanto ao papel de programas
televisivos na formação intelectual de crianças. Normalmente, as principais
críticas dizem respeito à baixa qualidade da programação oferecida, refletida
nos muitos programas de teor erótico ou violento, no linguajar inadequado e nas
diversas situações constrangedoras exibidas (como as que podem ser vistas a
qualquer minuto em novelas da Globo). O filósofo espanhol Fernando Savater, inspirado
nos escritos do americano Neil Postman, apresenta ideias diferentes em O valor de educar (Planeta, 2012).
Segundo Savater, o maior malefício que a grande exposição a programas
televisivos causa às crianças é a simplificação e o encurtamento de algumas
etapas de seu processo de aprendizagem. O texto abaixo é um trecho de O valor de educar, no qual Savater
explica com detalhes a sua posição a respeito da influência da TV na formação
das crianças:
“Porém,
nem todos os motivos do eclipse da família como fator de socialização primária
provêm de mudanças ocorridas nos adultos. Também é preciso levar em conta a
transformação radical do status das
próprias crianças, que permitiu que já há quinze anos Neil Postman desse a seu
livro mais famoso esse título provocador: O
desaparecimento da infância. O agente que Postman apontou como causador
desse desaparecimento foi precisamente a televisão.
Quase ouço o suspiro de alívio que muitos dos leitores mais beatos deste livro
acabam de exalar: finalmente estão começando os anátemas contra a caixa tola!,
era preocupante que um ensaio sobre educação demorasse tanto para investir
contra a fonte principal de todos os nossos males educacionais! Bem, peço-lhes
um pouco mais de paciência, pois provavelmente nem Postman nem eu iremos
agradar-lhes ainda. A revolução que a televisão causa na família,
principalmente por sua influência sobre as crianças, nada tem a ver, segundo o
sociólogo norte-americano, com a sabida perversidade de seus conteúdos, mas
provém de sua eficácia como instrumento de comunicação de conhecimentos. O
problema não reside no fato de a televisão não educar suficientemente, mas no
fato de educar demais e com força irresistível; o mau não é a televisão
transmitir falsas mitologias e outros embustes, mas é ela desmistificar
vigorosamente e dissipar sem contemplações as névoas cautelares da ignorância
que costumam envolver as crianças para que continuem sendo crianças. Durante
séculos, a infância manteve-se num limbo à parte do qual as crianças só iam
saindo gradualmente, de acordo com a vontade pedagógica dos adultos. As duas
principais fontes de informação eram, por um lado, os livros, que exigiam um
longo aprendizado para serem decifrados e compreendidos, e, por outro, as
lições orais de pais e professores, sabiamente dosadas. Os modelos de
comportamento e de interpretação do mundo que se ofereciam à criança não podiam
ser escolhidos voluntariamente nem rejeitados, porque careciam de alternativa.
Só depois de chegarem a uma certa maturidade e de se curar da infância os
neófitos iam se inteirando de que havia mais coisas no céu e na terra do que as
que até então lhes tinha sido permitido conhecer. Quando a informação revelava
as alternativas possíveis aos dogmas familiares, dando lugar às angustiantes
incertezas da escolha, a pessoa estava suficientemente formada para suportar
melhor ou pior a perplexidade.
Mas a televisão acabou com esse
desvendamento progressivo das realidades ferozes e intensas da vida humana. As
verdades da carne (o sexo, a procriação, as doenças, a morte...) e as verdades
da força (a violência, a guerra, o dinheiro, a ambição e a incompetência dos
príncipes deste mundo...) antes eram escondidas dos olhares infantis, cobertas
com um véu de recato ou vergonha que só se levantava pouco a pouco. A
identidade infantil (a mal denominada “inocência” das crianças) consistia em
ignorar essas coisas ou em lidar apenas com fábulas a respeito delas, ao passo
que os adultos caracterizavam-se justamente por possuir e administrar a chave
de tantos segredos. A criança crescia numa obscuridade aconchegante, levemente
intrigada por esses temas sobre os quais ainda não lhe davam respostas
completas, admirando com inveja a sabedoria dos adultos e desejosa de crescer
para ser digna de compartilhá-la. Mas a televisão rompe esses tabus e, de
maneira generosamente desordenada, conta
tudo: deixa todos os mistérios com a bunda de fora e, na maioria das vezes,
de forma mais literal possível. As crianças veem na tela cenas de sexo e
matanças bélicas, é claro, mas também assistem a agonias em hospitais, ficam
sabendo que os políticos mentem e roubam ou que outras pessoas zombam daquilo
que seus pais dizem que deve ser venerado.
Além disso, para ver televisão não é preciso nenhum aprendizado
especializado: acabou-se a trabalhosa barreira que a alfabetização impunha aos
conteúdos dos livros. Com algumas sessões diárias de televisão, até mesmo
assistindo aos programas menos agressivos e aos comerciais, a criança fica por
dentro de tudo o que antes os adultos lhe escondiam, enquanto os próprios
adultos vão se infantilizando diante da ‘tevê’, na medida em que se torna
supérflua a preparação por meio de estudos, antes imprescindível para se
conseguirem informações.
A televisão fornece meios de vida,
exemplos e contraexemplos, viola todos os recatos e promove entre as crianças a
urgência de escolher, que está inscrita na abundância de notícias
frequentemente contraditórias (junto com o mar de dúvidas que a acompanham). E
há mais: a televisão não só opera dentro da família como também emprega os
instrumentos de persuasão cálidos e acríticos da educação familiar. ‘A
televisão tende a reproduzir os mecanismos de socialização primária empregados
pela família e pela Igreja: socializa através de gestos, de climas afetivos, de
tons de voz e promove crenças, emoções e adesões totais’ (J.C. Tedesco). (...)
Não há nada mais subversivo educacionalmente quanto uma televisão: longe de
submergir as crianças na ignorância, como acreditam os ingênuos, ela as faz
aprender tudo desde o início, sem respeito pelos trâmites pedagógicos. Ah, se
pelo menos os pais estivessem junto delas para acompanhá-las e comentar esse
impudico bombardeio de informações que tanto acelera sua instrução! No entanto,
é próprio da televisão funcionar quando os pais não estão e, muitas vezes, para
distrair os filhos do fato de os pais não estarem, ao passo que em outras
ocasiões eles estão, mas tão mudos e enlevados diante da tela quanto as
próprias crianças.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário