Os arquivos filosóficos (Martins Fontes, 2010), de Stephen
Law, é uma obra preciosa para quem gosta de pensar nas chamadas grandes
questões da vida. Perguntas como “Deus existe?”, “De onde vem o certo e o
errado?”, “Será que é possível pular no mesmo rio duas vezes?” são apresentadas
e discutidas por Law em um estilo muito prazeroso de se ler, livre de jargão
técnico e fácil de ser entendido mesmo por quem nunca leu qualquer texto
filosófico.
Apresento
abaixo a parte inicial do primeiro capítulo do livro, no qual Law discute aquele
que é considerado um dos maiores problemas éticos contemporâneos por autores
como Peter Singer e Mark Rowlands: o uso de animais em nossa alimentação. A
questão “por que é errado matar e comer animais humanos, mas não é errado matar
e comer animais não-humanos?”, afinal, não admite uma resposta tão simples como
a maioria de nós é tentada a pensar.
Devo comer carne? (de Os arquivos filosóficos)
A história de Errol, o
explorador
Errol
era um explorador. Adorava navegar pelos mares em busca de novas terras.
Em uma de suas viagens para o norte, não
muito longe de onde começam as geleiras, ele descobriu uma pequena ilha
montanhosa coberta por uma floresta. Decidiu abandonar a tripulação no navio e,
a bordo de um pequeno bote, remou sozinho até a praia.
Errol levou provisões consigo: limonada
e sanduíches. Naquela noite, dormiu à beira-mar em uma rede que pendurou entre
dois grandes pinheiros.
No dia seguinte, Errol entrou na
floresta. Após mais ou menos uma hora de caminhada, começou a ver sinais de
vida humana. Havia clareiras na mata e áreas de queimadas que lembravam antigas
fogueiras de acampamentos. Errol ficou animado com a perspectiva de descobrir
uma nova tribo.
Finalmente, depois de sete horas, chegou
a uma clareira maior. Nela, havia três pessoas vestidas de maneira estranha.
Os três estranhos trajavam túnicas roxas
e usavam chapéus vermelhos esquisitos com a forma de triângulos de cabeça para
baixo. Estavam de pé em silêncio, examinando-o de cima a baixo. Parecia que
estavam esperando por ele.
Errol ergueu a mão em sinal de amizade.
Os três estranhos começaram a conversar entre si. Surpreso, Errol descobriu que
conseguia entender o que eles estavam dizendo, porque a língua que falavam era
muito parecida com uma outra, que ele conhecia, falada em uma ilha próxima
dali.
Então, horrorizado, Errol começou a
entender o que os três estranhos estavam planejando. Estavam dizendo o
seguinte:
- Ele é bonito e grande, acho que dá
para todos, não dá?
- Dá. Que músculos firmes! Deve ser
muito saboroso.
- Mas o cérebro é meu. Sempre fico com
os cérebros. São a melhor parte.
- Está bem, está bem, o cérebro é seu.
Vamos prepará-lo.
Os três estranhos era canibais: gente que come gente.
Começaram a avançar na direção de Errol, e só então ele percebeu que os
canibais estavam armados de facas, porretes e cordas.
Errol tentou fugir, mas os três eram
mais rápidos que ele. Quando deu por si, estava quase nu e amarrado como um
peru, pendurado em uma vara suspensa por duas estacas, sob a qual se erguiam
troncos e gravetos arrumados para se acender uma fogueira.
Tudo sugeria que estavam planejando
fazer um churrasco de Errol.
Ele virou a cabeça para enxergar mais à
sua volta e viu que estava em um salão. Ao seu redor havia muito mais daquela
gente vestida de maneira estranha. Olhavam para ele em silêncio. Alguns lambiam
os beiços.
Então, uma mulher aproximou-se com um
facão.
- Espere! – disse Errol.
Todos ficaram boquiabertos. Estavam
surpresos por constatar que Errol falava a língua deles.
- Por favor, não me comam – pediu Errol.
- Por que não? – perguntou a mulher com
o facão.
- Porque é errado, será que vocês não entendem? – disse Errol.
- Não, não entendo – disse a mulher. –
Por que é errado?
- Vocês não precisam me comer, precisam? Todos aqui parecem bem alimentados.
Comam outra coisa. Raízes, grãos, uma ave, sei lá.
A mulher pareceu confusa.
- Mas nós gostamos de comer gente. É uma
carne saborosa. Por que não haveríamos de comer?
- Está certo. Então, por que não comem
uns aos outros?
- Mas nenhum de nós quer morrer. Logo, é
melhor comer você.
- Mas eu não quero morrer! Sou um ser
vivo! E gosto da vida que levo. É muito errado interromper minha vida só para
que vocês se deliciem me comendo.
Houve quem concordasse.
- Talvez ele tenha razão – disse um
deles.
Errol achou que os estava quase
convencendo a não comê-lo, quando a mulher com o facão se abaixou, enfiou as
mãos na mochila de Errol e de dentro dela tirou uma garrafa de limonada e um
envelope pardo. Do envelope pardo, caiu um sanduíche comido pela metade.
- Então, o que é isso?
- É meu almoço.
- Sim, mas o que é isso?
- É um sanduiche. Um sanduíche de carne.
- Carne que pertencia a algum animal
vivo?
- Bem, sim. Quer dizer, acho que sim.
- Era um ser vivo, que gostava da vida,
que não queria morrer e mesmo assim foi morto, só para que você se deliciasse
com a carne dele?
Errol entendeu onde ela queria chegar.
- Sim, mas era apenas um animal. E é certo comer animais. Mas é
errado comer homens. Os homens são diferentes.
- Mas o homem também é um animal. Por
que é errado comer homens e não é errado comer animais que não são homens?
Errol não sabia o que responder à mulher
canibal.
- É porque é e pronto, compreendeu? –
disse Errol.
Mas eles não compreendiam.
- Não, não compreendemos – disse a
mulher. Explique-nos, por favor.
Errol precisava encontrar urgentemente
uma razão para explicar por que é
correto matar e comer uma vaca e não é correto matar e comer um animal humano.
Sabem que Errol não conseguiu pensar
numa boa razão? Então, os canibais mataram-no e cozinharam-no. Depois
comeram-no. Em seguida atacaram as coisas dele. Encontraram algumas mentas com
cobertura de chocolate bem gostosas. Sentaram-se em roda para comer as mentas e
conversar.
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