Por Luciano Mallmann*
Em uma conferência, Jorge Luis Borges afirma que a poesia é anterior ao livro, sendo este apenas uma ocasião para que ela se manifeste. Acredito que isso possa ser aplicado sem perda alguma à literatura como um todo, e dessa equação resultamos nós e os livros. Dessa maneira, o que temos é a literatura, e uma obra específica é apenas parte dela. Sendo assim, a expressão “O livro de minha vida”, no singular, me traz uma dificuldade: muito me perguntei como seria partir em pedaços algo que, mesmo surgido por meio de um encadeamento, soma apenas uma coisa, ou seja, os livros que lemos. Contudo, e aos meus olhos seria talvez esse o espírito dessa série, existem livros que, pelas circunstâncias em que nos encontrávamos ao lê-los, transcenderam em muito o seu papel, que em si já não é pequeno, de nos fazer enxergar o mundo sob outro viés e, por meio desse modo de ver, nos levar a uma evolução. Creio, a partir disso, serem esses os livros de nossas vidas: obras que refletem em detalhes determinados momentos que vivenciamos, conferindo-lhes um sentido que, por mais que nos esforçássemos, só logramos compreender por intermédio de uma leitura que apenas o acaso determina se ocorrerá ou não. Desse modo, a leitura de certos livros não pode ser avaliada fora do contexto em que os lemos pela primeira vez, pois, por seu caráter universal, suas histórias se tornaram elas próprias matéria-prima de nossa existência, ou, em outras palavras, parte de nossa biografia. Talvez nisso resida uma das maiores riquezas dos grandes livros: a capacidade, mesmo tendo sido escritos em alguns casos há séculos, de se mesclarem perfeitamente, trazendo sua luz, à realidade que nos cerca. Para este texto, escolhi dois exemplos que, antes de consistirem duas obras, significam também duas maneiras de ler.

“A arte – como o sonho – é quase sempre um ato antagônico da vida diurna”, escreve Ernesto Sabato acerca de Jorge Luis Borges. A sentença se refere a uma maneira diversa de leitura, que nos conduz a alturas elevadas a que apenas a grande arte pode nos alçar, o que, de qualquer maneira, não deixa também de ser um despertar, mas para um outro aspecto da vida. Essas palavras indicam o caminho para minha segunda obra: No caminho de Swann, de Marcel Proust, da qual falo aqui não como um mero capítulo introdutório a Em busca do tempo perdido, mas como um romance independente. O simples título do belo ensaio do filósofo alemão Harald Weinrich talvez seja suficiente para resumir em que consiste esse grande texto: “Uma poesia da lembrança surgida das profundezas do esquecimento”. Quando li Proust pela primeira vez, a adolescência já havia ficado para trás e eu cursava faculdade em Santa Maria. A leitura dessa obra era parte da disciplina Teoria da Literatura I, e seria uma introdução aos elementos estruturais da narrativa. Porém, encantar-se com Proust é inevitável e não está sujeito a conhecimentos mais aprofundados. Pois, por mais fundamental que sejam tempo e espaço ou foco narrativo, a maior beleza revelada por essa obra é a própria epifania, ou seja, tudo que surge a partir da lembrança involuntária, ocasionada por uma madeleine mergulhada numa xícara de chá, que traz ao personagem-narrador a lembrança de sua infância em Combray, onde passava os feriados prolongados. É através dessas recordações que travamos contato com personagens inesquecíveis, tais como Françoise, tia Léonie, Legrandin, Odette de Crécy, Vinteuil, os insuportáveis Verdurin e, é claro, Charles Swann. E passamos a conhecer também, de maneira detalhada, a geografia da região, da qual o caminho de Guermantes será para sempre o espaço da utopia. E não há mesmo como não se encantar com o virtuosismo de Proust quanto aos aspectos mais técnicos do romance como gênero, como a mencionada estrutura narrativa, a maestria no manejo do tempo psicológico – que, pelo fato de ser rememorado, torna o espaço também psicológico, recriado por meio de uma beleza cuja descrição exigiria raros superlativos. Se para o personagem surgem à memória as imagens e impressões de tempos remotos, para quem lê é um universo totalmente novo, fabuloso, que se descortina: trata-se do espírito proustiano, ou seja, o deixar-se fascinar por uma obra, por seu autor, seus personagens, suas descrições, teorias e divagações, que passam a fazer parte de nossa vida, a ponto de a realidade descrita tornar-se mais uma vez indissociável aos dias em que lemos suas páginas. Parte do ensinamento de Proust reside na valorização do tempo no instante mesmo em que ele ocorre, ou seja, o presente. Somente através da atribuição de seu justo valor será possível, mais tarde, em nossas vidas, recriar o tempo por meio da rememoração, o que em si também significa riqueza, tanto no aspecto dos fatos relembrados como pela sabedoria que a reflexão a partir desse passado proporciona. É para ilustrar esse aspecto que me valho, mais uma vez, das palavras de Walter Benjamin, para quem a obra representa “um Nilo da linguagem, que transborda nas planícies da verdade, para fertilizá-las”. Tais palavras não poderiam ser mais verdadeiras. No caso em questão, é Proust quem verte suas palavras para além dos limites das páginas, fecundando nossos dias, para usar a expressão de um amigo e colega leitor, com “a mais sublime literatura universal”. Vale recordar que Virginia Woolf tinha uma interessante e eloquente visão do paraíso: ele seria uma leitura ininterrupta, sem que o leitor perdesse a noção de si mesmo e a lucidez. Exageros à parte, se houver alguma verdade nessa fantasia da escritora, creio que o paraíso teria diversos nomes, e um deles poderia muito bem ser No caminho de Proust.
* Luciano Mallmann é um jornalista gaúcho. Habilidoso escritor, mantém o blog Contemplações; improvisos, onde fala sobre livros e outros temas interessantes relacionados a eles.
"O Livro da Minha Vida" é um projeto do Blog Página Virada. O blog publicará regularmente um post sobre uma obra que marcou a vida de alguém. Para participar, mande seu texto para paginaviradablog@yahoo.com.br
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"O Processo" eu já pude ler; Gostei muito do livro e também das impressões e comentários do Mallmann.
ResponderExcluirJ.Cataclism
Oi J.Cataclism,
ResponderExcluirEu ainda não li nenhuma das obras citadas pelo Luciano. Aproveitei a dica e comprei "O Processo", que foi publicado em versão de bolso pela Saraiva.
Um abraço
Guilherme
Guilherme, não sei tua idade, mas chuto ali um pouco antes dos trinta, não? Pergunto porque, quando eu li, eu era mais novo, mas teve amigo meu, amante das obras do Kaftka, que leu "O Processo" ao completar trinta anos de idade, que é a época em que se encontra a personagem principal do livro. A experiência, segundo ele, é OUTRA heheheh. Fica a dica.
ResponderExcluirJ.Cataclism
Oi J.Cataclism,
ResponderExcluirTeu chute foi certeiro: tenho 28 anos. "O Processo" entrou na lista das próximas leituras, e vamos ver se eu confirmo a ideia de teu amigo.
Um abraço
Guilherme
Guilherme, obrigado pela publicação. Oi, J. Cataclism, muito grato pelos comentários. A propósito: estou ainda tentando me habituar aos adjetivos: "habilidoso escritor". Sem falsa modéstia e sinceramente, nunca me considerei mais que um escrevinhador ou, eventualmente, um amontoador de palavras. Isso quanto à escrita. Na verdade, tirando a profissão, o que sou mesmo é um leitor, e foi nessa qualidade que escrevi. Mas obrigado! Me sinto muito honrado.
ResponderExcluirAbraços!
Luciano
Precisamos conhecer mais do Luciano. Sem dúvida o autor escolhido tewm presença marcante na vida de muitos leitores. Meu primeiro contato com Kafka foi através da 'Metamorfose' e fiquei, na época, impressionado. Parabéns ao Luciano, aos comentários do J. Cataclism e ao Guilherme e a Natália que vem fazendo essa ótima articulação. Quem sabe tenhamos ainda estudantes em nossas Universidades que consigam continuar a ler, entender o que estão lendo para que possamos discutir um pouco mais nosso envolvimento na vida do planeta.
ResponderExcluirProf. Valdemir Guzzo
Excelente texto. Palmas.
ResponderExcluirConfesso que sempre tive um pouco de receio de ler Proust, talvez por medo do tal "silencio" gerado pelo fim de um livro bom.
"O Processo" é visceral. Acho que essa é a melhor palavra que posso encontrar para descrevê-lo.
Abraço a todos.