sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

O Livro da Minha Vida (5) - Kafka e Proust: duas obras, dois modos de ler

Por Luciano Mallmann*

Em uma conferência, Jorge Luis Borges afirma que a poesia é anterior ao livro, sendo este apenas uma ocasião para que ela se manifeste. Acredito que isso possa ser aplicado sem perda alguma à literatura como um todo, e dessa equação resultamos nós e os livros. Dessa maneira, o que temos é a literatura, e uma obra específica é apenas parte dela. Sendo assim, a expressão “O livro de minha vida”, no singular, me traz uma dificuldade: muito me perguntei como seria partir em pedaços algo que, mesmo surgido por meio de um encadeamento, soma apenas uma coisa, ou seja, os livros que lemos. Contudo, e aos meus olhos seria talvez esse o espírito dessa série, existem livros que, pelas circunstâncias em que nos encontrávamos ao lê-los, transcenderam em muito o seu papel, que em si já não é pequeno, de nos fazer enxergar o mundo sob outro viés e, por meio desse modo de ver, nos levar a uma evolução. Creio, a partir disso, serem esses os livros de nossas vidas: obras que refletem em detalhes determinados momentos que vivenciamos, conferindo-lhes um sentido que, por mais que nos esforçássemos, só logramos compreender por intermédio de uma leitura que apenas o acaso determina se ocorrerá ou não. Desse modo, a leitura de certos livros não pode ser avaliada fora do contexto em que os lemos pela primeira vez, pois, por seu caráter universal, suas histórias se tornaram elas próprias matéria-prima de nossa existência, ou, em outras palavras, parte de nossa biografia. Talvez nisso resida uma das maiores riquezas dos grandes livros: a capacidade, mesmo tendo sido escritos em alguns casos há séculos, de se mesclarem perfeitamente, trazendo sua luz, à realidade que nos cerca. Para este texto, escolhi dois exemplos que, antes de consistirem duas obras, significam também duas maneiras de ler.
        É muito famosa a frase de John Donne segundo a qual nenhum homem dorme na carreta que o leva da prisão ao patíbulo; apesar disso, todos dormimos desde o nascimento até a sepultura, ou não estamos inteiramente despertos. Essa seria, segundo o poeta inglês, a função da alta literatura: despertar o homem que é conduzido ao patíbulo. Aos dezesseis anos, experimentei toda a verdade contida nessa afirmação. Sob vários aspectos, foi um período difícil, repleto de questionamentos, como costuma ser para muitos nessa faixa etária. Talvez pelo fato de ter tido uma rígida criação católica, as dificuldades mais comuns pareciam tomar a forma de uma punição sem causa. Todavia, aqueles dias teriam sido ainda mais tortuosos se um determinado escritor não houvesse surgido, como que por acaso, com a finalidade de, por assim dizer, explicar com rara exatidão o funcionamento da vida: Franz Kafka. O nome da obra: O processo. O enredo é bastante conhecido: nesse romance, deparamo-nos com Joseph K., um bancário que, por razões que permanecem desconhecidas tanto para o personagem como para o leitor, é detido numa manhã por dois policiais. É difícil não ceder à tentação de interpretar essa obra, examinando-a sob a ótica da biografia do autor, sua origem judaica, entre diversos outros aspectos. Esses modos de interpretação são sem dúvida muito válidos, mas sempre manifestei minha preferência por privilegiar, na visão de certas obras, simplesmente aquilo que elas se revelam capazes de despertar em nós; no caso em questão, o maior assombro. Diante da situação do personagem, somos levados a pensar que houve algum erro, uma falha humana, mas somos informados por Tintorelli, o pintor, que “quando acusa alguém, a Corte não pode ser arredada dessa convicção”. Ou seja: não há engano algum. Pusemo-nos então a imaginar que espécie de transgressão Joseph teria cometido, o que, por permanecer na esfera da subjetividade, também se revela inútil: nada poderia ser mais contrário a Kafka. Temos de contentar-nos então com os dados que o narrador nos fornece e questionar-nos a respeito da natureza da Justiça que move o processo contra Joseph K., na qual nos surpreende sobretudo a inacessibilidade dos magistrados, distância também presente em O castelo. Creio mesmo que, se nos puséssemos a imaginar a vida pregressa do personagem, não seríamos capazes de encontrar nada além de uma existência irrepreensível em todos os sentidos. A despeito disso, somos informados, através de um personagem, que “jamais se pode duvidar da culpa”. Nesse momento, tomamos conhecimento de que a transgressão de Joseph K. diz respeito também a nós, embora, para entendê-la, não possamos fazer mais que aventar hipóteses: existiria porventura culpa por se estar vivo, ou por viver neste mundo? Ou seria simplesmente algo como uma completa falta de lógica desse mesmo mundo em que vivemos? Seja como for, essas respostas repercutem em nossas mentes ao longo dos anos que se sucedem à leitura sem que tenhamos jamais noção, mais especificamente, de respostas plausíveis. Voltando à obra: por mais que o personagem seja realmente culpado, do que duvidamos sempre, estamos certos de que, no máximo, o veredicto lhe reservará não mais que alguns anos de prisão. Pensar desse modo, porém, só é possível para quem não conhece Franz Kafka, o que era o meu caso. Não sei se é nisso que reside a força da obra e, principalmente, do final, daquele final: a  morte violenta, “como um cachorro”, nas mãos de dois executores. E a observação do narrador parece explicitar ainda mais a suposta infâmia do personagem: “era como se a vergonha fosse sobrevivê-lo”. Tendo em nossas mãos a página aberta nessa cena, o que nos resta é a mais completa perplexidade. Creio que seja por momentos semelhantes que Fabrício Carpinejar afirmou que a literatura nasce do silêncio e provoca silêncio, do que não há como discordar. E O processo, em qualquer momento em que seja lido, será sempre um ritual de iniciação marcado sobretudo por um silêncio de estupefação.

      “A arte – como o sonho – é quase sempre um ato antagônico da vida diurna”, escreve Ernesto Sabato acerca de Jorge Luis Borges. A sentença se refere a uma maneira diversa de leitura, que nos conduz a alturas elevadas a que apenas a grande arte pode nos alçar, o que, de qualquer maneira, não deixa também de ser um despertar, mas para um outro aspecto da vida. Essas palavras indicam o caminho para minha segunda obra: No caminho de Swann, de Marcel Proust, da qual falo aqui não como um mero capítulo introdutório a Em busca do tempo perdido, mas como um romance independente. O simples título do belo ensaio do filósofo alemão Harald Weinrich talvez seja suficiente para resumir em que consiste esse grande texto: “Uma poesia da lembrança surgida das profundezas do esquecimento”. Quando li Proust pela primeira vez, a adolescência já havia ficado para trás e eu cursava faculdade em Santa Maria. A leitura dessa obra era parte da disciplina Teoria da Literatura I, e seria uma introdução aos elementos estruturais da narrativa. Porém, encantar-se com Proust é inevitável e não está sujeito a conhecimentos mais aprofundados. Pois, por mais fundamental que sejam tempo e espaço ou foco narrativo, a maior beleza revelada por essa obra é a própria epifania, ou seja, tudo que surge a partir da lembrança involuntária, ocasionada por uma madeleine mergulhada numa xícara de chá, que traz ao personagem-narrador a lembrança de sua infância em Combray, onde passava os feriados prolongados. É através dessas recordações que travamos contato com personagens inesquecíveis, tais como Françoise, tia Léonie, Legrandin, Odette de Crécy, Vinteuil, os insuportáveis Verdurin e, é claro, Charles Swann. E passamos a conhecer também, de maneira detalhada, a geografia da região, da qual o caminho de Guermantes será para sempre o espaço da utopia. E não há mesmo como não se encantar com o virtuosismo de Proust quanto aos aspectos mais técnicos do romance como gênero, como a mencionada estrutura narrativa, a maestria no manejo do tempo psicológico – que, pelo fato de ser rememorado, torna o espaço também psicológico, recriado por meio de uma beleza cuja descrição exigiria raros superlativos. Se para o personagem surgem à memória as imagens e impressões de tempos remotos, para quem lê é um universo totalmente novo, fabuloso, que se descortina: trata-se do espírito proustiano, ou seja, o deixar-se fascinar por uma obra, por seu autor, seus personagens, suas descrições, teorias e divagações, que passam a fazer parte de nossa vida, a ponto de a realidade descrita tornar-se mais uma vez indissociável aos dias em que lemos suas páginas. Parte do ensinamento de Proust reside na valorização do tempo no instante mesmo em que ele ocorre, ou seja, o presente. Somente através da atribuição de seu justo valor será possível, mais tarde, em nossas vidas, recriar o tempo por meio da rememoração, o que em si também significa riqueza, tanto no aspecto dos fatos relembrados como pela sabedoria que a reflexão a partir desse passado proporciona. É para ilustrar esse aspecto que me valho, mais uma vez, das palavras de Walter Benjamin, para quem a obra representa “um Nilo da linguagem, que transborda nas planícies da verdade, para fertilizá-las”. Tais palavras não poderiam ser mais verdadeiras. No caso em questão, é Proust quem verte suas palavras para além dos limites das páginas, fecundando nossos dias, para usar a expressão de um amigo e colega leitor, com “a mais sublime literatura universal”. Vale recordar que Virginia Woolf tinha uma interessante e eloquente visão do paraíso: ele seria uma leitura ininterrupta, sem que o leitor perdesse a noção de si mesmo e a lucidez. Exageros à parte, se houver alguma verdade nessa fantasia da escritora, creio que o paraíso teria diversos nomes, e um deles poderia muito bem ser No caminho de Proust.

* Luciano Mallmann é um jornalista gaúcho. Habilidoso escritor, mantém o blog Contemplações; improvisos, onde fala sobre livros e outros temas interessantes relacionados a eles.


"O Livro da Minha Vida" é um projeto do Blog Página Virada. O blog publicará regularmente um post sobre uma obra que marcou a vida de alguém. Para participar, mande seu texto para paginaviradablog@yahoo.com.br

7 comentários:

  1. "O Processo" eu já pude ler; Gostei muito do livro e também das impressões e comentários do Mallmann.

    J.Cataclism

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  2. Oi J.Cataclism,

    Eu ainda não li nenhuma das obras citadas pelo Luciano. Aproveitei a dica e comprei "O Processo", que foi publicado em versão de bolso pela Saraiva.

    Um abraço
    Guilherme

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  3. Guilherme, não sei tua idade, mas chuto ali um pouco antes dos trinta, não? Pergunto porque, quando eu li, eu era mais novo, mas teve amigo meu, amante das obras do Kaftka, que leu "O Processo" ao completar trinta anos de idade, que é a época em que se encontra a personagem principal do livro. A experiência, segundo ele, é OUTRA heheheh. Fica a dica.

    J.Cataclism

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  4. Oi J.Cataclism,

    Teu chute foi certeiro: tenho 28 anos. "O Processo" entrou na lista das próximas leituras, e vamos ver se eu confirmo a ideia de teu amigo.

    Um abraço
    Guilherme

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  5. Guilherme, obrigado pela publicação. Oi, J. Cataclism, muito grato pelos comentários. A propósito: estou ainda tentando me habituar aos adjetivos: "habilidoso escritor". Sem falsa modéstia e sinceramente, nunca me considerei mais que um escrevinhador ou, eventualmente, um amontoador de palavras. Isso quanto à escrita. Na verdade, tirando a profissão, o que sou mesmo é um leitor, e foi nessa qualidade que escrevi. Mas obrigado! Me sinto muito honrado.
    Abraços!
    Luciano

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  6. Precisamos conhecer mais do Luciano. Sem dúvida o autor escolhido tewm presença marcante na vida de muitos leitores. Meu primeiro contato com Kafka foi através da 'Metamorfose' e fiquei, na época, impressionado. Parabéns ao Luciano, aos comentários do J. Cataclism e ao Guilherme e a Natália que vem fazendo essa ótima articulação. Quem sabe tenhamos ainda estudantes em nossas Universidades que consigam continuar a ler, entender o que estão lendo para que possamos discutir um pouco mais nosso envolvimento na vida do planeta.
    Prof. Valdemir Guzzo

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  7. Excelente texto. Palmas.
    Confesso que sempre tive um pouco de receio de ler Proust, talvez por medo do tal "silencio" gerado pelo fim de um livro bom.
    "O Processo" é visceral. Acho que essa é a melhor palavra que posso encontrar para descrevê-lo.

    Abraço a todos.

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