O
mineiro Fernando Gabeira considera estranho que as pessoas o reconheçam mais
pela sua atuação na política nacional do que por seu trabalho no jornalismo,
ofício que iniciou ainda na adolescência e que continua nos dias atuais,
através de seu site pessoal, seu blog, artigos para o Estado de São Paulo, e de reportagens especiais para canais de TV
brasileiros.
O fato de Gabeira ser mais associado à
política se deve ao fato de que ele participou ativamente do cenário político
brasileiro desde a época da ditadura militar, quando ingressou em um grupo de resistência
ao regime que protagonizou uma das mais famosas histórias da época, o sequestro
do embaixador americano Charles Elbrick, solto do cativeiro em troca da liberdade
de prisioneiros políticos. Apesar de não ter tido uma participação direta no sequestro
(Gabeira morava de aluguel em uma casa espaçosa, que por isso foi escolhida
para ser o cativeiro do embaixador), o jornalista foi preso e, depois de ficar
algum tempo em cárceres brasileiros, foi exilado. O tempo fora do Brasil terminou
com a anistia, em 1979, e Gabeira pode retomar as suas atividades como
jornalista e iniciar uma nova etapa de luta política, agora ao lado de antigos e
novos companheiros em partidos políticos oficiais, na década de 1980.
Em Onde
Está Tudo Aquilo Agora? Minha vida na política (Companhia das Letras,
2012), Gabeira reflete sobre a vida política brasileira nas últimas décadas.
Deputado federal de destaque pelo PT e PV, Gabeira deixou a política há poucos
anos, e agora se dedica ao jornalismo e à luta pelas causas que tem abraçado há
décadas – como o ambientalismo – mas fora de gabinetes ou de partidos
políticos.
Tenho um grande respeito por Fernando
Gabeira desde a época em que, como ele, simpatizava com o Partido dos
Trabalhadores. Politicamente, estou mais à esquerda do que à direita, mas não
me sinto representado por nenhum partido político. Gabeira deixou a política
desiludido com os rumos que o PT, um partido que se afirmava diferenciado,
tomou. “Sonhei o sonho errado”, disse ele no plenário da Câmara em 2003, ao
anunciar a desfiliação do PT, considerando que o projeto de transformação do
Brasil não caminhava em sintonia com as promessas, e se assemelhava à velha
esquerda comunista do leste europeu, despreocupada com as consequências ambientais
dos projetos de produção que incentivava, incapaz de olhar para si própria
criticamente, e incapaz de denunciar a exploração social quando ela ocorria em
países camaradas, como Cuba.
Em
sua obra de memórias, Gabeira escreve sobre o país depois do segundo mandato de
Lula, comentando a estranha política de alianças do governo federal com aqueles
que, há muito pouco tempo, eram considerados pelo próprio partido do presidente
os grandes ladrões do Brasil:
“Consolidou-se uma aliança da
esquerda triunfante com os políticos tradicionais e coronéis nordestinos. Os primeiros
trouxeram uma justificativa teórica para o bloqueio das investigações
perpetrado pelos segundos. Tudo é feito em nome de um projeto que distribui
rendas e reduz desigualdades sociais. Os adversários são rapidamente
engavetados no escaninho, com o rótulo de direitistas.
Para que as práticas tradicionais, sobretudo o desvio de dinheiro
público para a própria conta bancária, se consolidassem, foi necessária a
também paciente construção de uma nova língua. Isso aconteceu de forma caricata
no livro de Orwell, 1984. No Brasil, não foi muito diferente. Para justificar o
dinheiro ilegal recebido de empresas e não registrado no Tribunal Eleitoral,
traduziram a conhecida expressão “caixa dois” por “recursos não contabilizados”.
Gabeira também critica duramente o
empreguismo que tomou conta do Brasil nos últimos anos. Para trabalhar em
determinados governos, pouco importa se você é qualificado para exercer a
função para a qual foi designado. Basta ter a carteirinha do partido e um bom
histórico de contribuição à “causa” de sua sigla partidária:
“Naquela altura, quando estourou o escândalo
do mensalão, outros temas me entristeciam, tanto que os mencionei também num
discurso contra a atuação de José Dirceu à frente da Casa Civil: o governo não
reagia ao desmatamento na Amazônia e tinha culpa na morte das crianças guaranis-caiuás
em Dourados.
Esse último episódio ficou engasgado na minha garganta. Participei de
uma comissão que foi investigar uma sequência de mortes de crianças na reserva
guarani-caiuá de Dourados, e fiquei arrasado ao concluir que aquelas crianças
morreram pela incompetência da equipe da Funasa responsável pela área indígena.
O pior: os membros da equipe haviam sido escolhidos por critérios políticos,
desalojando bons profissionais. Ainda em nossa investigação surgiram evidências
de mau uso do dinheiro, notas fiscais estranhas, indicações claras de que
houvera uso eleitoral de recursos. Os grupos que prometiam mudar a vida política
do Brasil, varrer os velhos e maus costumes, tinham capitulado.”
Onde Está Tudo Aquilo Agora? é mais do que um resumo da
vida e da atuação de Gabeira: é uma versão breve da história contemporânea da
política brasileira. Nela, encontramos personagens pitorescos como José Sarney,
Renan Calheiros, Zé Dirceu, Severino Cavalcanti, Jair Bolsonaro e Ideli
Salvatti – todos eles foram, ou ainda são, nossos representantes. Infelizmente,
para cada Gabeira que temos na Câmara, há uma centena de Dirceus. Retrato de um
país que se deixou encantar pelo “rouba, mas faz”, slogan sempre associado ao
politicamente eterno Paulo Maluf, mas que se ajusta muito melhor hoje àqueles
que o criticavam há quase duas décadas.