sábado, 15 de fevereiro de 2014

A escola não é assassina

Atentem para a seguinte declaração do escritor Ferréz, autor de Capão pecado e Manual prático do ódio, dada no programa Provocações da TV Cultura: “os professores tinham que ser treinados para ter amor pela literatura, porque a escola é uma assassina de leitores, quando ela manda resumir um livro em 20 dias ela assassina qualquer tipo de leitor futuro.”
        Essa afirmação é de um total desconhecimento tanto de educação quanto de formação do leitor. Primeiro porque não é papel da escola fazer com que o aluno goste de literatura, mas sim mostrar a ele tudo que se fez de importante na história da humanidade em matéria de cultura, arte, pensamento. Aí se inserem as obras literárias. Geralmente, é um mundo do qual o educando tenta se afastar de qualquer forma, afinal há outras prioridades na sua vida que ficam a quilômetros de distância do conhecimento. O que é normal. Não é por isso que o professor vai deixar de, pelo menos, dar a oportunidade do jovem conhecer esse mundo. Se não o fizesse, estaria sonegando o acesso ao saber.
        Não é a escola que assassina o leitor. Eu até pensava dessa forma e escrevi um artigo, intitulado “Crônica de uma literatura assassinada”, em que me culpava por supostamente afastar os alunos dos livros. Penso um pouco diferente hoje. Claro que há muitos professores que dão aulas de língua portuguesa e não gostam de literatura. Esses são perigosos. Muitos, porém, como eu, são apaixonados por ela, mas se veem obrigados a solicitar trabalhos porque os alunos não leem de forma nenhuma, a não ser por pressão. E aí vem o segundo ponto, a formação do leitor. Simplesmente há aqueles que têm mais aptidão para gostar de ler e outros não. É o caso do próprio Ferréz. Despertado por leituras de Hermann Hesse, ele acabou buscando outros autores e livros, criando sua rede de escritores preferidos. Nenhuma escola o tirou essa paixão, nenhuma influência de outras pessoas o fez mudar de caminho. Se há assassinos da literatura, elas são os diversos tipos de entretenimento que são mais interessantes do que um livro. O jovem até poderia conciliá-los, mas não o faz, por diversos motivos, entre os quais ouvir pessoas dizerem que cumprir tarefas não é prazeroso e, por isso, não deve ser feito.
        Quando um escritor vem a público fazer uma crítica sem fundamento à escola, mais alunos vão ver nela uma inimiga. Ferréz faz um grande desserviço, ele que é uma espécie de porta-voz da periferia, dos desassistidos da sociedade, até porque também milita na cultura Hip Hop. Ele deveria dizer "molecada, vamos estudar e ler. Se é chato ou não, não importa, o importante é construir conhecimento. Os professores não são inimigos. Se eles pedem para resumir ou falar para a turma sobre um livro chato, é porque esse livro, em algum momento, disse alguma coisa para humanidade e continua dizendo, caso contrário, como muito outras obras, já teria caído no esquecimento. Se vocês não lerem, outros lerão, e terão mais conhecimento do que vocês.”
        Agora, se o conhecimento não é importante, não há nada a fazer. E viva a burrice!

Cassionei Niches Petry – professor e escritor

e-mail: cassio.nei@hotmail.com  blog: http://cassionei.blogspot.com

sábado, 8 de fevereiro de 2014

Qual é a sua teoria da conspiração preferida?

No dia 21 de julho de 1969, os astronautas Neil Armstrong, Buzz Aldrin e Michael Collins entraram para a história como os primeiros seres humanos a chegarem à superfície da Lua. Armstrong foi o primeiro homem a pisar na Lua (e lá proferiu a lendária sentença “um pequeno passo para um homem, um salto gigantesco para a humanidade”), seguido por Aldrin, enquanto Collins não saiu do módulo lunar da Apollo 11. Depois de Armstrong e Aldrin, outros dez astronautas caminharam na Lua, em outras missões Apollo. No total, 24 pessoas viajaram até nosso satélite natural, em operações muito bem documentadas, registradas em áudio e vídeo, e que envolveram um grande número de pessoas. Os astronautas também trouxeram amostras de rochas e de solo lunares, e parte desse material está exposto em museus de diversos países do mundo.
        O grande volume de evidências de que fomos até a Lua, no entanto, não parece ter sido suficiente para convencer algumas pessoas da veracidade desse fato. De acordo com uma pesquisa feita em 2001 pelo Instituto Gallup, 6% dos americanos – o que corresponderia a cerca de 20 milhões de habitantes dos EUA – afirmaram que a ida do homem à Lua não passa de uma fraude. Em outros países, a desconfiança é ainda maior. Essas pessoas sustentam a ideia de que houve uma conspiração tramada pelo governo americano em parceria com estúdios e diretores de cinema para enganar a população, que ingenuamente acreditou que os vídeos transmitidos pela NASA tinham sido feitos pelos astronautas na Lua, quando na verdade eles foram filmados em um estúdio no deserto americano.
        As teorias da conspiração fazem parte do imaginário humano há muito tempo. No século XX, por exemplo, acompanhamos uma infinidade de ideias “alternativas” que tomaram forma, e fizeram muitas pessoas acreditarem que governos e sociedades secretas sempre tentavam manipular as informações que chegavam até a população. Assim, muita gente foi levada a crer que o governo americano esconde alienígenas em bases aéreas secretas, que Lee Harvey Oswald não matou Kennedy, que a AIDS foi uma doença criada por laboratórios farmacêuticos para matar pessoas na África, e que Obama nasceu no Quênia e, por isso, não poderia ser presidente dos EUA (é necessário que a pessoa tenha nascido nos Estados Unidos para ser presidente deste país). E, claro, muitos também acreditam que o homem não foi à Lua.
        No Brasil, algumas teorias da conspiração ganharam espaço nos últimos dois anos. Durante os protestos que sacudiram nosso país em junho e julho de 2013 surgiram, nas redes sociais, ideias mirabolantes que indicavam que as manifestações populares abririam espaço para um golpe militar aos moldes do de 1964. Obviamente, entre os manifestantes existiam aqueles que clamavam pela volta dos militares, mas esses eram a minoria, e não representavam os desejos da esmagadora maioria das pessoas que saíram às ruas de todo o Brasil, uma maioria composta por cidadãos comuns cansados de tantos problemas nas áreas da saúde, educação, transporte público, segurança, etc.
        Esse ano, um novo tipo de conspiracionista apareceu, e ele se opõe ideologicamente ao conspiracionista de 2013. O novo conspiracionista é aquele que imagina que ocorrerá um “golpe comunista” no Brasil em 2014. Quais são as evidências disso? Nenhuma, somente um amontoado de ideias soltas, que tentam ser amarradas para que o sujeito consiga apresentar algumas razões para sustentar sua pré-concebida conclusão.
        Obviamente, governos escondem muitas informações do público, e existem, sim, grupos e empresas que têm grande influência sobre as sociedades humanas. E, claro, nem toda teoria aparentemente conspiratória se mostra uma fraude (o caso Watergate, na década de 1970, é um bom exemplo disso). No entanto, não é razoável abraçar uma ideia quando não existem boas evidências para ela ou, ainda, quando existe um bom volume de evidências contrárias. Dizer que o Brasil esteve próximo de um golpe militar em 2013, e que caminha para um golpe comunista em 2014, é ser guiado por preferências ideológicas no lugar da razão e do bom senso. E é assim que as ideias conspiratórias se mantêm: o indivíduo estabelece uma conclusão, busca algumas ideias para fundamentá-la, e descarta tudo aquilo que contradiz o seu pensamento.
        O que temos que temer quando somos inundados por ideias conspiratórias não é o conteúdo delas em si, mas a falta de pensamento crítico em uma sociedade que as deixa florescer. Pensar com mais clareza – e estar atento às evidências – nos protege de uma série de armadilhas e de problemas, como aceitar teorias conspiratórias e outras tantas ideias que são potencialmente prejudiciais a nós.

sexta-feira, 31 de janeiro de 2014

Devo comer carne?

Os arquivos filosóficos (Martins Fontes, 2010), de Stephen Law, é uma obra preciosa para quem gosta de pensar nas chamadas grandes questões da vida. Perguntas como “Deus existe?”, “De onde vem o certo e o errado?”, “Será que é possível pular no mesmo rio duas vezes?” são apresentadas e discutidas por Law em um estilo muito prazeroso de se ler, livre de jargão técnico e fácil de ser entendido mesmo por quem nunca leu qualquer texto filosófico.
Apresento abaixo a parte inicial do primeiro capítulo do livro, no qual Law discute aquele que é considerado um dos maiores problemas éticos contemporâneos por autores como Peter Singer e Mark Rowlands: o uso de animais em nossa alimentação. A questão “por que é errado matar e comer animais humanos, mas não é errado matar e comer animais não-humanos?”, afinal, não admite uma resposta tão simples como a maioria de nós é tentada a pensar.


Devo comer carne? (de Os arquivos filosóficos)

A história de Errol, o explorador

Errol era um explorador. Adorava navegar pelos mares em busca de novas terras.
        Em uma de suas viagens para o norte, não muito longe de onde começam as geleiras, ele descobriu uma pequena ilha montanhosa coberta por uma floresta. Decidiu abandonar a tripulação no navio e, a bordo de um pequeno bote, remou sozinho até a praia.
        Errol levou provisões consigo: limonada e sanduíches. Naquela noite, dormiu à beira-mar em uma rede que pendurou entre dois grandes pinheiros.
        No dia seguinte, Errol entrou na floresta. Após mais ou menos uma hora de caminhada, começou a ver sinais de vida humana. Havia clareiras na mata e áreas de queimadas que lembravam antigas fogueiras de acampamentos. Errol ficou animado com a perspectiva de descobrir uma nova tribo.
        Finalmente, depois de sete horas, chegou a uma clareira maior. Nela, havia três pessoas vestidas de maneira estranha.

quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

A influência da televisão na formação das crianças

Não há qualquer novidade em lermos objeções quanto ao papel de programas televisivos na formação intelectual de crianças. Normalmente, as principais críticas dizem respeito à baixa qualidade da programação oferecida, refletida nos muitos programas de teor erótico ou violento, no linguajar inadequado e nas diversas situações constrangedoras exibidas (como as que podem ser vistas a qualquer minuto em novelas da Globo). O filósofo espanhol Fernando Savater, inspirado nos escritos do americano Neil Postman, apresenta ideias diferentes em O valor de educar (Planeta, 2012). Segundo Savater, o maior malefício que a grande exposição a programas televisivos causa às crianças é a simplificação e o encurtamento de algumas etapas de seu processo de aprendizagem. O texto abaixo é um trecho de O valor de educar, no qual Savater explica com detalhes a sua posição a respeito da influência da TV na formação das crianças:

quinta-feira, 26 de dezembro de 2013

Pensar melhor, para refinar nossas ideias e evitar os lugares-comuns

Existem várias respostas a perguntas referentes ao sentido de termos escolas e de educarmos formalmente alguém. Eu tendo a concordar com autores como John Dewey e, principalmente, Matthew Lipman, que defendiam que o objetivo educacional mais importante é nos fazer pensar melhor. Em A filosofia vai à escola (Summus, 1990), Lipman afirma que “nenhuma acusação à educação é mais séria do que a acusação de que ela favorece atitudes acríticas em vez de críticas” – o termo “crítica”, aqui, não deve ser entendido em seu sentido popularmente mais conhecido, como uma apreciação desfavorável ou uma constante busca de erros e de defeitos em alguma ideia. O que Lipman aponta é que escola deveria favorecer atitudes reflexivas, ponderadas, que estejam bem fundamentadas em razões, ou seja, razoáveis (esse é um termo muito usado pelo autor em seus escritos – um sujeito razoável, afirma Lipman, é alguém que faz uso constante da razão).
        A ideia de que a escola deve nos ajudar a pensar melhor não indica que o bom pensamento é um fim em si mesmo. Lipman argumentava que nós deveríamos nos preocupar em pensar melhor para melhorar os nossos julgamentos a respeito das mais variadas ideias às quais somos expostos. O refinamento de nossos julgamentos, conclui o autor, é o caminho mais confiável para termos uma vida melhor (individual e socialmente), considerando que nós costumeiramente agimos de acordo com aquilo que pensamos. Em O pensar na educação (Vozes, 2008), Lipman escreve:

O objetivo do processo educativo é o de ajudar-nos a formar melhores julgamentos a fim de que possamos modificar nossas vidas de maneira mais criteriosa. Julgamentos não são fins em si mesmos. Nós não experienciamos obras de arte a fim de julgá-las; julgamos estas a fim de sermos capazes de ter experiências estéticas enriquecedoras. Fazer julgamentos morais não é um fim em si mesmo; é um meio de melhorar a qualidade de vida.

        Pensar bem para formar melhores julgamentos parece ser algo razoável. E, quando se fala em “bom pensamento” nos termos descritos por Lipman – e resumidos nos parágrafos acima –, encontramos na literatura educacional a expressão “pensamento crítico” como seu correlato. Segundo o filósofo norte-americano Harvey Siegel, pensamento crítico é uma expressão que deve ser entendida normativamente como um conjunto de habilidades cognitivas e disposições comportamentais desejáveis para que alguém possa pensar melhor. Entre essas habilidades, por exemplo, estão a capacidade de entender e avaliar argumentos e a de pensar a respeito de seu próprio pensar (metacognição). Entre as disposições, a mais destacada é o chamado “espírito crítico”, ou seja, a inclinação que um sujeito tem a sempre procurar pensar de maneira aprofundada a respeito de algum tema, buscando razões e evidências que orientem o seu pensamento. A respeito do pensamento crítico, Siegel afirma:

Por causa dessa conexão entre razões e princípios, o pensamento crítico é um pensamento baseado em princípios: devido ao fato que os princípios envolvem consistência, o pensamento crítico é imparcial, consistente e não-arbitrário, e o pensador crítico tanto pensa quanto age de acordo com, e valoriza, a consistência, a justiça e a imparcialidade do julgamento e da ação. O julgamento crítico, baseado em princípios, em sua rejeição da arbitrariedade, inconsistência e parcialidade, pressupõe o reconhecimento da força dos padrões, considerando-os como universais e objetivos, de acordo com os quais os julgamentos devem ser feitos. Em primeira instância, tais padrões envolvem critérios pelos quais os julgamentos podem ser feitos com relação à aceitabilidade de várias crenças, afirmações e ações – ou seja, eles envolvem critérios que permitem a avaliação da robustez e da força das razões que podem ser oferecidas em suporte a crenças, afirmações e ações alternativas

        Além de ressaltar a importância de critérios para se pensar criticamente, Siegel apresenta um aspecto que eu considero o mais relevante, e difícil de ser atingido, para se pensar criticamente e fazer bons julgamentos: a imparcialidade. Todo ser humano é carregado de ideias, posições ideológicas, visões de mundo, etc. Além dessa carga de informação preconcebida, temos um aparato psicológico bastante eficiente em solidificar nossas crenças e elaborar mecanismos para defendê-las. Por isso é difícil pensar de modo imparcial, considerando somente as razões ou evidências às quais temos acesso, sem incutir nelas qualquer preferência pessoal.
      Consideremos o caso do aquecimento global antropogênico (AGA, também denominado “mudança climática antropogênica”), a ideia de que a atividade humana tem impactado o clima de nosso planeta. Nos Estados Unidos, é comum que um cidadão alinhado ao partido democrata aceite a ideia do AGA, enquanto outro, alinhado ao partido republicano, a rejeite. No entanto, provavelmente a aceitação ou rejeição da ideia do AGA tenha em seu âmago um forte viés ideológico: se o mundo está ficando cada vez mais quente, e se isso se dá devido ao aumento da concentração de gases estufa na atmosfera que, por sua vez, são em sua maioria resultado de atividade industrial, então é sensato que ocorram interferências nos sistemas de produção industrial, especialmente nos países que mais poluem, um cenário visto com maus olhos por um republicano, mas compatível com o pensamento democrata; por outro lado, se o AGA não existe, isso significa que não há nenhuma razão em restringir ou modificar qualquer aspecto da produção industrial, e assim a economia dos grandes países industrializados está a salvo de potenciais danos, em um cenário que agrada aos republicanos muito mais do que aos democratas. Assim, o AGA – que deveria estar somente no âmbito da ciência, pelo menos no que se refere à sua ocorrência (existem evidências para ele? O que diz o consenso científico a respeito do tema?) – acaba se tornando uma discussão carregada de ideologia, e guiada por ela.
        Casos como o do aquecimento global antropogênico e tantos outros (evolução X criacionismo, conspiracionistas que fazem campanhas contra a vacinação, negadores do holocausto, etc.) não nos mostram que é impossível ser imparcial quando ponderamos a respeito de determinada questão. Afinal, depois de toda a discussão que esses assuntos suscitaram, é possível saber para onde a preponderância das evidências aponta, e assim entender quais são as melhores ideias em cada caso (o AGA tem acontecido; a teoria da evolução biológica abrange o que melhor sabemos a respeito de como a vida evoluiu em nosso planeta; as vacinas funcionam, salvam vidas, e devem ser aplicadas conforme tradicionalmente se recomenda; o holocausto aconteceu, e resultou em milhões de pessoas mortas pelos nazistas). Aceitar a preponderância das evidências, mesmo que elas entrem em conflito com nossa visão de mundo, isso é ser imparcial no sentido apresentado por Siegel. A parcialidade, nesse caso, deve estar atrelada às razões e às evidências. "Se existirem boas razões para se aceitar 'A', mas minha visão de mundo está de acordo com 'B', o que fazer?" Se fortes razões existirem, um sujeito imparcial, fazendo um bom julgamento, deve considerar seriamente abandonar a ideia B em favor de A.
        Reli Lipman e Siegel há pouco tempo e, durante a leitura, refleti sobre a maneira pela qual uma série de debates é feita no Brasil. É muito comum encontrarmos chavões no lugar de ideias. Lugares-comuns abundam por aqui, e uma consulta aos comentários postados por leitores em páginas de notícias, ou em redes sociais, demonstra que as pessoas parecem mais empenhadas em atestar que abraçam determinada causa ou ideia do que propriamente a entendem. Se você solicitar a alguém que explique porque ele imagina que o Brasil está sob ameaça de golpe comunista (como algumas pessoas aparentemente propensas a ideias conspiracionisitas acreditam), dificilmente você receberá um conjunto de boas razões para aceitar essa ideia estranha. Igualmente, é provável que faltem bons argumentos para aqueles que costumam brincar com palavras ou expressões politicamente corretas, mas que não conseguem sustentar as suas ideias depois de uma ou duas perguntas pertinentes.
        Criamos uma cultura na qual uma virtude inquestionável é agarrar-se a alguma ideia e defendê-la a qualquer custo de exame externo – uma cultura que se opõe à defendida por autores como Matthew Lipman, por ser incompatível com o bom pensar. Um sujeito que passa a vida inteira repetindo bordões, mesmo sem ter pensado criticamente a respeito deles, é considerado por muitos como um bom exemplo intelectual. A dúvida, ou mesmo o abandono da crença em determinada ideia, não são virtudes bem cotadas entre nós. O filósofo americano Peter Boghossian, em seu corajoso A manual for creating atheists (Pitchstone Publishing, 2013), escreve a respeito dessa questão com muita propriedade:

Enquanto sociedade, temos considerado como virtude a importância de se acreditar em alguma coisa e de defender nossas crenças. A frase comum ‘defenda aquilo que você acredita’ tem sido tomada como algo positivo – uma virtude que deveria ser aspirada por todos, e uma deficiência moral se não for seguida.
        Se alguém deveria defender ou não aquilo em que acredita, isso depende exclusivamente em 'o que' esse sujeito acredita, e porque ele acredita nisso. Ter uma firme crença não é uma virtude. Nenhuma inferência moral confiável pode ser feita a respeito de um indivíduo baseado na força de sua convicção.


        Penso que nós todos deveríamos nos esforçar sinceramente para abrir um espaço importante para o pensamento imparcial, para as boas razões e evidências em nossa maneira de interagir com o mundo e sustentar nossos juízos a respeito de qualquer assunto. Pensar bem não implica defendermos a qualquer custo aquilo em que acreditamos, mas demanda honestidade intelectual suficiente para reavaliarmos nossas posições e ideias com base nas melhores evidências disponíveis, deixando um espaço considerável para a possibilidade de estarmos errados. E, no que diz respeito à possibilidade de alguém estar errado, a honestidade intelectual deveria fazer com que todos nós constantemente nos perguntássemos: que tipo de evidência ou razão eu preciso para concluir que determinada ideia – que eu aceito há algum tempo – não é tão boa quanto eu pensava e que, por isso, eu preciso revisá-la? Se existir alguma evidência ou razão que poderia confrontar nossas crenças, e nós estamos dispostos a analisá-la, então estamos desenvolvendo uma atitude que pode nos afastar de dogmatismos e nos conduzir a um pensar melhor.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

A importância de boas doses de ceticismo

O filósofo Massimo Pigliucci escreve que, certa vez, foi convidado por um programa de rádio americano para falar sobre a questão da evolução biológica e do criacionismo como explicações para a evolução da vida no planeta, um assunto bastante discutido em certas partes dos Estados Unidos, especialmente na região central do país. O outro convidado era o também cético Michael Shermer. Pigliucci afirma que o locutor do programa do qual estavam participando ficou intrigado ao perceber que os dois convidados pareciam pessoas bastante amigáveis, que sorriam e eram cordiais, ou seja, eram pessoas muito felizes para “serem céticos”.
A visão do radialista americano sobre o que é um cético é compartilhada por muita gente. Há poucos dias, a revista UFO, no Brasil, publicou em sua página do Facebook um manifesto contra os “céticos” que não aceitam que as marcas surgidas em uma plantação no interior de Santa Catarina no começo do mês sejam obras de alienígenas. O comunicado diz:

Amigos, deixando de lado estas discussões com céticos tolos, que há anos se repetem em sua incredulidade e perdem grandes chances de abrirem suas mentes para aquilo que não conseguem entender, vamos prosseguir com a conversa de maneira construtiva. Até porque, em mais de três décadas dedicadas à Ufologia, encontrei todo tipo de cético pela frente, menos um: O CÉTICO INTELIGENTE! Esse não existe, porque, quando há inteligência, não pode haver ceticismo.
Todos os céticos que conheci, infelizmente, são de uma pobreza mental de dar dó. Ultrapassados, limitados, ignorantes (no sentido de não buscarem informações que desafiem o que conhecem), ranzinzas e chatos. Deixemos os caras de lado, mas não sem antes relembrarmos a eles: moçada, Ipuaçu fica em Santa Catarina, não em Katmandu. Para se chegar lá e ver as coisas pessoalmente, há estradas e o local não é inacessível. Pode-se ir até lá por inúmeras rodovias, ok? Então, help yourself, senhores céticos!

De acordo com o texto da revista, ceticismo e inteligência são características incompatíveis. Um cético é um sujeito de mente fechada e que, por isso, não percebe quantas coisas está deixando de saber. A mente fechada é um sinal de pobreza intelectual, segue o comunicado da revista, e os céticos são também ignorantes por não buscarem informações diferentes daquelas com as quais estão familiarizados. E, obviamente, céticos são “ranzinzas e chatos”.

Uma das melhores definições a respeito do que significa ser um cético vem de Massimo Pigliucci (aqui, o autor se refere ao uso contemporâneo do termo, e não ao ceticismo radical, uma posição filosófica que sustenta que não é possível ter conhecimento do mundo): “Ser cético significa nutrir reservas razoáveis a respeito de certas afirmações. Significa querer mais evidências antes de chegar a alguma conclusão. Mais importante, significa manter uma atitude de abertura para calibrar as crenças de alguém de acordo com as evidências disponíveis”.
Contrariamente às visões comuns sobre o ceticismo, ser cético não significa ser chato, e também não significa uma obsessão por tentar mostrar que qualquer afirmativa é falsa. Significa, simplesmente, ter padrões de exigências mais refinados para aceitar alguma ideia como provavelmente verdadeira. Assim, se alguém diz que a falta de marcas aparentes de ação humana é suficiente para que se acredite que um desenho em uma lavoura de trigo foi feito por alienígenas, então, de fato, esse sujeito não é um cético, pois sua conclusão parte de evidências bastante frouxas, da aceitação de falácias filosóficas (como o apelo à ignorância) e, basicamente, de suposições fantasiosas que não recebem nenhum endosso da ciência (ex: aliens inteligentes nos visitam).
A falta de ceticismo é um dos maiores males do mundo contemporâneo, afirma o jornalista americano Guy Harrison em seu recém lançado Think: why we should question everything (Pense: por que nós deveríamos questionar tudo, publicado pela Prometheus Books nos Estados Unidos, e ainda sem edição brasileira). Tendemos a acreditar em tudo sem demandar boas razões para isso. Aceitamos tranquilamente o que um político diz somente porque ele pertence ao partido de nossa preferência. Tomamos um “complexo vitamínico” porque o anúncio que vimos na TV é bem feito, com pessoas bonitas, e a empresa afirma que irá devolver nosso dinheiro se o produto não funcionar. Acreditamos que alienígenas viajaram por distâncias inimagináveis, chegaram à Terra e aqui nos deixaram alguma mensagem (que nunca conseguimos decifrar) em plantações de trigo, e chegamos a essa conclusão porque “isso não pode ter sido feito por seres humanos.” A aceitação de ideias que provavelmente são falsas nos leva a perder dinheiro, a arriscar nossa saúde, ou simplesmente a perder tempo procurando por coisas que provavelmente nunca encontraremos, como aliens fazendo desenhos em plantações.
Harrison afirma que devemos ter uma “dose saudável de dúvida” e usarmos a razão para discernirmos entre aquilo que é provavelmente real e aquilo que não é. Isso significa não assumir que conhecemos alguma coisa sem ter boas razões que a sustentem. Essa postura cética, quando aplicada às mais diversas situações que vivenciamos, pode mudar o mundo para melhor, conclui o autor.

Parte das ideias de Harrison em Think pode ser encontrada nesse texto do autor, publicado no blog da revista Psychology Today.

segunda-feira, 7 de outubro de 2013

O verdadeiro valor das coisas

Na década de 1920, o filósofo alemão Moritz Schlick escreveu um artigo intitulado “On the meaning of life” (“Sobre o sentido da vida”). A grande preocupação de Schlick era a de que, para muitas pessoas, o sentido da vida se encontrava no trabalho, e que não havia muito valor fora dele. O que o filósofo alemão testemunhava, na década de 1920, era uma verdadeira idolatria ao trabalho, e tal adoração persiste até os dias atuais, marcadamente em países como os Estados Unidos, mas também em regiões de colonização européia, como na serra gaúcha.
    Segundo Mark Rowlands, filósofo galês e autor do excelente O filósofo e o lobo (Objetiva, 2010), o trabalho se constitui em uma atividade que tem valor instrumental (ou extrínseco): o trabalho é bom porque a partir dele podemos conseguir outras coisas. Trabalhamos para receber o pagamento pelo trabalho que fizemos, e com o dinheiro podemos comprar aquilo que quisermos (ou pudermos), podemos viajar, podemos manter um nível de vida de certo conforto, etc. O valor do trabalho, por isso, não está nele mesmo, mas naquilo que ele nos possibilita ter ou fazer. Schlick ia além, e afirmava que o trabalho não é algo necessariamente remunerado: sempre que faço A para obter B, estou trabalhando.
    Passamos a maior parte de nossas vidas trabalhando, se considerarmos as definições apresentadas por Rowlands e Schlick. A maior parte das coisas que fazemos em nosso cotidiano vale por aquilo que elas nos possibilitam. Ligamos o aparelho televisor de nossa sala para esquecer nossos problemas. Lemos um artigo ou um livro porque temos provas a realizar, na escola ou na universidade. Caminhamos pelas ruas de nossa cidade porque queremos perder peso. Obviamente, as razões apresentadas para assistir a algo na TV, ler ou caminhar são importantes e válidas. Mas, segundo Rowlands, elas não são as melhores justificativas ou, pelo menos, elas nos afastam do maior valor que pode existir em uma leitura, ou em uma caminhada.
    Consideramos que alguma atividade tem valor intrínseco quando encontramos valor nela própria, ou seja, quando a atividade é um fim em si mesma. Mark Rowlands escreve a esse respeito em Running with the pack: thoughts from the road on meaning and mortality (Granta, 2013, ainda não publicado no Brasil), um livro que pode ser considerado como uma espécie de continuação de O filósofo e o lobo. Para Rowlands, correr é uma atividade de valor intrínseco. O autor passou boa parte de sua vida correndo em companhia de cães (e do lobo Brenin) e, com o tempo, começou a entender essa atividade como tendo um valor muito maior do que qualquer um normalmente atribuído a ela. Muitas pessoas correm para perder peso, para aliviar o estresse, ou para realizar alguma atividade social (quando correm em um grupo de pessoas – ou com os cães, como faz o filósofo), entre outros motivos. Mas sempre há um motivo para alguém correr. Rowlands afirma ter aprendido que, mais do que esses objetivos, correr pode ser algo mais. Correr com o único propósito de correr é o que tem feito o autor, apesar da dor e do mal estar que uma corrida algumas vezes causa. E correr por correr – a experiência pela experiência – é o que confere um grande significado à corrida.
    Rowlands escreve: “se queremos encontrar valor na vida, algo que poderia se apresentar como um possível sentido da vida, ou um de seus sentidos – então precisamos procurar por coisas que não têm propósito. Dito de outra maneira: a condição necessária para que alguma coisa seja realmente importante na vida é que ela não tenha um propósito fora dela mesma – que ela seja inútil para qualquer outra coisa. A inutilidade – nesse sentido – é uma condição necessária do valor real. Se o valor de algo fosse uma questão de sua utilidade para algo mais, então seria esse algo mais o centro do valor”. Assim, afirma o autor, encontrar um sentido intrínseco em boa parte das coisas que fazemos (considerando que é muito difícil, senão impossível, encontrar valor intrínseco em todas) é um dos caminhos para ter uma vida mais significativa.

   Terminei a leitura de Running with the pack e passei a pensar em como minhas atividades podem ser enquadradas em instrumentais ou de valor intrínseco. Parte significativa das coisas que faço, admito, tem valor instrumental. As faço porque preciso delas para outra coisa. Mas tenho aprendido e, principalmente, sentido, que tantas outras atividades que realizo são boas e valorosas por si mesmas. É esse o sentimento que tenho durante e depois de uma boa aula (seja eu professor ou aluno) ou da leitura de um bom livro. É assim que me sinto depois de uma caminhada com meus cães. É assim também quando converso com alguém sobre algum tema interessante. É assim quando sento ao lado de minha namorada, ou de meus pais, para tomar um chimarrão. E, por isso, dou razão a Rowlands quando ele afirma que a vida passa a ter mais significado quando extraímos mais sentido das coisas que fazemos.