quarta-feira, 27 de outubro de 2010

O Livro da Minha Vida (2)

Por Natália

      Eu poderia indicar, para cada fase de minha vida, várias obras marcantes. Para a pré-adolescência, livros policiais de autores como Agatha Christie, Conan Doyle e Marcos Rey. Para a adolescência, O Mágico de Oz (recentemente resenhado) e O Dia do Curinga, de Jostein Gaarder. Para a época da graduação, os clássicos de Machado de Assis, os romances policiais de P.D.James e obras da Literatura Ocidental em geral (como O Morro dos Ventos Uivantes e Drácula). Recentemente, fui presenteada por uma professora muito querida, Prof. Flávia Saretta, com um livro escrito por volta de 1940 e publicado mais de 60 anos depois. Sua autora, Irène Némirovsky, é um dos maiores nomes da literatura do século passado. E essa obra, Suite Française, é um dos retratos mais impressionantes sobre a ocupação alemã na França durante a Segunda Guerra Mundial.
      Ao contrário de outras obras sobre a II Guerra, Suite Française não descreve os grandes conflitos nem as aflições dos soldados no campo de batalha. Os personagens da obra são pessoas comuns, mais ou menos afortunadas, que procuram fugir de Paris nos dias anteriores à invasão alemã. São apresentados, portanto, não indivíduos heroicos ou cidadãos com forte sentimento patriótico; o que a obra traz a seus leitores são famílias, casais e jovens que, temendo por sua vida e zelando pelo próprio conforto, são capazes tanto de ajudar como de prejudicar as pessoas que estão em situação semelhante à sua.
      Na primeira parte da obra, quando Paris está prestes a ser ocupada, alguns episódios chamam a atenção. Em meio a bombardeios, a mãe de uma família aristocrática aconselha seus filhos a compartilharem seus doces com crianças mais pobres. Quando percebe que todas as mercearias estão fechadas e que, se a distribuição de guloseimas continuar, os próprios filhos ficarão sem doces, ela proíbe-os de prosseguir com tal gesto de boa-vontade. Mais tarde, na tentativa de fugir de outros ataques, essa mesma família abandona um abrigo no meio da madrugada, levando consigo o gato da família e se esquecendo do avô, que sofria de uma doença degenerativa.
      Já na segunda parte da obra, com a ocupação alemã estendendo-se também pela região ao sul da capital francesa, observamos como a rotina de um vilarejo se altera por causa da presença de soldados nazistas. Os homens da localidade dirigem aos invasores um ódio quase violento, pois temem que o charme dos combatentes faça-os perder suas mulheres. E, enquanto as mulheres mais novas de fato suspiram pelos soldados, uma vez que veem neles uma oportunidade para desviarem-se de sua maçante rotina rural, as mais velhas culpam-nos pelo desaparecimento de seus filhos durante o conflito. É nessa parte da obra que, entre uma francesa e um oficial alemão, criam-se laços quase que fraternais: os dois sabem que o destino de suas nações e de suas famílias foi enormemente modificado por causa da guerra.
      O mais surpreendente de Suite Française (Vintage International, 2006) é a maneira como Némirovsky consegue construir, a partir de pequenos episódios, uma grande narrativa. Além disso, é interessante perceber que, ao contrário da maioria das obras (literárias ou não) sobre a Segunda Guerra Mundial, Suite Française é imparcial, sem defender os franceses e atacar os alemães. Em vez de fazer isso, a obra mostra o quanto o conflito é doloroso, independentemente da nacionalidade dos envolvidos. Vale destacar, porém, que Némirovsky adota essa postura neutra apesar de sua situação na França. Nascida em Kiev, na Ucrânia, e oriunda de uma família judaica, Irène Nemiróvsky muda-se para Paris em 1918, para fugir da Revolução Russa. Na França, converte-se ao Catolicismo e casa-se com um banqueiro, Michel Epstein, também um judeu convertido. Irène e a família viviam em Paris quando a ocupação alemã ocorreu, e foi nessa ocasião que ela começou a redigir Suite Française, atualmente sua obra mais reconhecida. Porém, o romance não foi finalizado porque a autora e seu marido foram presos e deportados a Auschwitz. Michel Epstein foi imediatamente mandado à câmara de gás. Irène morreu pouco tempo depois, de tifo. Suite Française permaneceu escondida por muito tempo até que, há menos de uma década, foi publicada. Ainda que inacabada, é uma obra de arte de brilhantismo e grandeza incalculáveis.

"O Livro da Minha Vida" é um projeto do Blog Página Virada. O blog publicará todas as quartas-feiras um post sobre uma obra que marcou a vida de alguém. Para participar, mande seu texto para paginaviradablog@yahoo.com.br

3 comentários:

  1. "O Dia do Curinga"... faz tempo que quero pegar este livro na mão, mas ainda não crei vergonha nem de terminar "O Vendedor de Histórias", do mesmo autor.

    E gostei muito dessa resenha completa do "Suite". Mas o livro não chegou a sair em português, ou saiu?

    De qualquer forma, valeu a dica!

    J.Cataclism

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  2. Oi, J.Cataclism,
    Não tenho conhecimento de nenhuma tradução de 'Suite Française'. De qualquer modo, a tradução para o inglês (já que o original foi escrito em francês) é bem simples e pode ser lida mesmo por quem não é tão proficiente na língua. É um livro belíssimo, vale a pena conhecê-lo. Obrigada pelo comentário,
    Natália

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  3. Natália, fico feliz que tenhas gostado do livro e que ele tenha rendido uma resenha. Um abraço! Flávia

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